Pedalando e educando: 26º Relato

31° Diário - 05 de outubro de 2003 Oeste da Turquia

Merhaba,

Quanta montanha! Estamos suando para pedalar aqui na Turquia. Desde os vales da Capadócia, no centro do país, passamos por dois grandes lagos, descemos para a costa do Mediterrâneo e agora estamos seguindo pelo litoral visitando várias ruínas dos grandes impérios da antiguidade.

Nós em Urgup - Capadócia

A parte oeste do país é bastante desenvolvida e extremamente turística – bem diferente do que vimos na outra metade turca.

A Capadócia marca o ponto de transição. Ao invés de barreiras do exército e tanques vimos hotéis, restaurantes, praias e milhares de europeus aproveitando as férias de verão. O turismo aumentou, a hospitalidade diminuiu e tudo ficou mais caro.

 

Morros escavados

Passamos cinco dias pela Capadócia, uma região formada por uma incrível interação das forças naturais e humanas. Grandes vales de rochas vulcânicas foram e seguem sendo esculpidas pelo vento e pela água.

A fértil área foi ocupada desde o século XX a.C. Primeiro vieram os hatti, depois os hititas, persas, gregos, romanos, árabes, seljuks, mongóis e otomanos.

Para construírem suas casas esculpiram cavernas nas macias rochas e para cada filho que nascia bastava cavar mais um pouco e construir um novo quarto. Assim fizeram também igrejas, mercados, fortificações e verdadeiras cidades subterrâneas.

Hoje grande parte das cavernas se transformaram em hotéis, bares e museus mas ainda é possível encontrar as moradias típicas nas pequenas vilas.

Afrescos nas igrejas da Capadócia

Seguimos caminho e passamos por muitas plantações irrigadas artificialmente. A agricultura é a principal economia do país. Plantam trigo, arroz, chá, algodão, tabaco, batata e várias frutas.

Vimos e comemos melão, pêssego, maçã, pêra, figo e uva. Em um dos nossos acampamentos montamos a barraca no meio de um plantação, tomamos banho nos diques de irrigação e, no outro dia, o dono nos viu – além de não ficar bravo com a nossa folga ainda nos presenteou com um saco de batatas.

Em 1915 ocorreu aqui um dos maiores genocídios do mundo. Os armênios, que viviam na região desde o século VI a.C., foram perseguidos e estima-se que 1,5 milhão foi assassinado e outro 1,5 milhão fugiu do país. Esperávamos encontrar algum memorial mas aqui ninguém toca no assunto. Preferem a fórmula do “não sei, não quero saber e tenho raiva de quem sabe”. Assim aprendem a história turca que é contada com a voz forte e irretocável do governo. Na escola não estudam sobre o genocídio e oficialmente negam o fato.

“Las tragedias conmueven al mundo en proporción directa a la publicidad que tienen.” Eduardo Galeano Após nossa passagem pelo leste do país estávamos curiosos para saber a versão dos “turcos-turcos” sobre os problemas com os “turcos-curdos”. Vários “turcos-turcos” nos explicaram usando quase as mesmas palavras “-Existe muito analfabetismo no povo Curdo, são facilmente manipulados e seguem qualquer grupo sem saber o que fazem. Querem dividir nosso país. Isso é inaceitável. Somos UMA Nação, UMA língua e UMA bandeira”. Nos afirmaram.

Se fosse possível entender uma guerra, eu diria que essa possui dois lados errados. Erram o PKK e o exército turco pois ambos matam civis. A verdadeira razão de tantos problemas parece algo que transcende uma disputa interna. Fica a impressão de uma rivalidade que é instigada por países que tentam enfraquecer a Turquia.

No início da invasão anglo-americana no Iraque os Estados Unidos fizeram uma oferta de 26 bilhões de dólares para que os turcos os ajudassem enviado tropas de apoio. A oferta balançou a ambição do país e quase foi aceita. A pressão européia e a força de união muçulmana contra os americanos prevaleceram e a oferta foi negada. Hoje a proposta está se repetindo com outras proporções e estratégias. Fala-se no envio de tropas turcas para o norte do Iraque para “controlar” os curdos que vivem nessa área que por “coincidência” é rica em petróleo. Antes esses curdos eram perseguidos pelo Sadam Hussein que matou mais de 5 mil deles usando armas químicas.

Caravanserai – Ponto de parada da rota da seda

Agora, sem o Sadam, é necessário que alguém os “controle” para, em teoria, evitar que o PKK ganhe força no país vizinho. A desculpa foi bem formulada mas a decisão final ainda não foi tomada. Tudo depende para onde a balança vai tombar – de um lado está o inimigo americano e do outro o inimigo PKK.

Seguimos pedalando entre as plantações e muitas montanhas. Visitamos Sultanhani Caravanserai, um dos maiores pontos de parada das caravanas da rota da seda.

Tomando chá

Estas construções serviam para proteger as mercadorias dos saqueadores. Possuem altas muralhas e um imenso portão. Dentro existem uma mesquita, lugares para as mercadorias, animais e para as pessoas dormirem.

De quase todos os lugares é possível escutar os sons das mesquitas que, com seus alto-falantes voltados para a cidade, numa mistura de canto e prece, avisam os fiéis, cinco vezes ao dia, que Alá está chamando.

Nesse momento as casas de chá esvaziam e aqueles que não podem ir à mesquita buscam um lugar limpo para se ajoelharem em direção à Meca e orarem.

Mesquita em Konya

Uma das cidades mais religiosas e conservadoras da Turquia é Konya. Visitamos o local e nos impressionou a quantidade de mesquitas. Acordamos ao som de dezenas de alto-falantes ecoando no nosso quarto. Arrumamos as bicicletas e seguimos oeste. Nossos próximos quatro dias foram pedalando, com muito vento na cara, na beira dos lindos lagos Beysehir e Egidir.

Alexandra seguiu tendo problemas com os homens turcos. Ela e várias outras mulheres ocidentais que encontramos reclamaram da falta de respeito.

Pôr do sol em Beysehir

Teve homem que tentou beijar, ver por buracos nas portas, fazer gracinhas ou até mesmo parar o carro na beira da estrada para perguntar se queriam fazer sexo. Haja paciência! Teve até um senhor, com seus 60 anos, que tentou passar a mão.

Dentre as várias brigas e discussões que cada situação gerava guardarei a tragicômica e inesquecível cena da Alexandra correndo com uma vassoura na mão para bater num cara que tentou entrar no banheiro feminino que ela estava usando.

Vilas no caminho para o Mediterrâneo

Algumas cenas foram realmente engraçadas mas as estatísticas de estupro daqui não têm nenhuma graça. Por isso, sempre que pudemos, relatamos os casos para a polícia e em três ocasiões conseguiram pegar os caras.

Depois dos lagos descemos para a costa do mar Mediterrâneo, passamos pela turística Antália com suas muralhas e porto romanos e visitamos o teatro de Aspendos, uma das poucas ruínas bem conservadas do país.

Teatro de Aspendos – Séc. II d.C.

Seguimos para Olimpus onde matamos a saudade da praia que não víamos desde a Tailândia. Olimpus é a ruína de uma cidade do século V a.C. escondida entre imensas montanhas com um rio que deságua numa pequena praia de água morna e cristalina. Ou seja, é um paraíso.

Com exceção do massivo turismo dos barcos de Antália que fazem day trip nessa praia, o local é habitado por um pessoal relax que fica na pequena vila de umas dez guest houses com casas de madeira.

Olympos

Depois de dois dias aproveitando a praia fomos para Kas de onde Alexandra seguiu de barco para a Grécia. Seu plano é chegar o mais rápido possível na Alemanha para evitar pedalar no inverno europeu. Boa sorte amiga!

“Assim como as flores murcham E a juventude cede à velhice, Também os degraus da Vida, A sabedoria e a virtude, a seu tempo, Florecem e não duram eternamente. A cada apelo da vida deve o coração Estar pronto a despedir-se e a começar de novo, Para, com coragem e sem lágrimas se Dar a outras novas ligações. Em todo O começo reside um encanto que nos Protege e ajuda a viver...”

Trecho do poema “Degraus” do poeta alemão Hermann Hesse

Meu plano é seguir mais alguns quilômetros pela costa até Izmir, uma cidade grande onde talvez eu consiga consertar meu notebook que quebrou. De lá pretendo voltar um pouco para o leste e descer pela Síria até a Jordânia e visitar o nordeste africano. Assim passo o inverno próximo à linha do Equador e não congelo. Grande abraço, Argus



PATROCÍNIO: Cultura Inglesa T-bolt Mountain Bike by Proton Edar
APOIOS: Atex Lajes Nervuradas, BHZ Arquitetura, SOL Serviços On Line, Telsan Engenharia, Prudential Bradesco e Rotary Club
*Os Textos completos você encontra no site: www.pedalandoeeducando.com.br

<< Pedalando e educando: 25º Relato                                                    Pedalando e educando: 27º Relato>>


Pedalando e educando: O Projeto