Pedalando e educando: 27º Relato

32° Diário - 01 de dezembro de 2003 Jordânia

Salam Malaikom, Bem vinda a África!! Fiz minhas últimas pedaladas asiáticas na Jordânia e acabo de atravessar para o Sinai no Egito. Junto com as celebrações do novo continente estamos comemorando também dois anos na estrada! Viva viva! Na Jordânia as ruínas dos antigos impérios continuaram sendo a grande atração. Em Petra, além de visitar a sua impressionante cidade perdida, parei também para fazer um tratamento num hospital e matar uma ameba que carregava já há alguns meses. Agora já estou bem e sigo com saúde. Um pouco sobre a Jordânia... A região é uma estratégica ligação das rotas entre a África e a Ásia o que fez vários impérios se estabeleceram aqui. Depois dos nabateus passaram por aqui os babilônios, persas, gregos, romanos, bizantinos, árabes, cruzados e turco-otomanos.

Aqui é também a "terra sagrada" para os cristãos, judeus e muçulmanos. Até o início do Séc. XX a Jordânia era parte da Palestina, grande parte do que é hoje o Estado de Israel. Após a I Guerra Mundial a região foi dividida entre franceses e britânicos e o Reino Unido controlou o país até a independência proclamada pelo Rei Abdullah em 1946. O país faz fronteira com Israel, Palestina, Egito, Iraque Arábia Saudita e Síria. Apesar de estar no meio da "confusão" o local é tranquilo. O ex-Rei Hussein, que morreu em 1999, é idolatrado pela população por sua atuação de intermediador e bom diplomata conseguindo fazer o país prosperar em paz.

Família que me hospedou em Jerash

No meu primeiro dia na Jordânia pedalei até Jerash, onde existem ruínas de uma antiga cidade. Cheguei de tarde e não encontrei nenhum hotel. Segui pedalando para sair um pouco da cidade e armar minha barraca. No caminho os alto-falantes das mesquitas anunciaram o fim do jejum diário do Ramadã.

Um senhor me viu pedalando e me convidou para jantar com sua família. A refeição veio junto com um lugar para dormir e, mesmo sem formularmos uma frase, ficamos bons amigos. A família trabalha numa plantação de oliveiras e era bastante simples.

Ao pedir para tomar um banho percebi que eu já estava querendo luxo demais. Pegaram metade de um único balde de água da casa e me arrumaram um lugar para me limpar.

Fiquei com vergonha de usar a pouca água que tinham mas já era tarde. Insistiram que eu tomasse meu banho - excesso de gentileza árabe ou talvez eu tivesse fedendo. Na madrugada acordei para compartilhar com a família alguns pães.

Eles acordaram às 3:30h da madrugada, comeram, beberam e fumaram o máximo que conseguiram e voltaram a dormir. Quando acordamos novamente o sol já havia nascido e já não podiam comer até o sol se pôr novamente. Assim foi até o fim do Ramadã.

Jerash

No outro dia fui novamente para a cidade visitar as ruínas. Jerash é uma das mais bem preservadas cidades da Decápolis Romana. Também fazem parte da Decápolis Romana as cidades que visitei na Síria - Bosra e Damascus.

De tarde segui para a capital Aman. O norte do país é a parte menos árida e onde se pode ver alguma agricultura. No caminho vi plantações de orquídeas, oliveiras e pequenas florestas de pinus. Calculei mal a pedalada, fui devagar e cheguei de noite. A noite é muito movimentada na Jordânia, até as 23:00h o comércio fica aberto e tem muita gente na rua. Um costume que provavelmente vem do calor do verão. Durante as quentes tardes as pessoas ficam dentro das casas e quando refresca de noite abrem o comércio e vão para as ruas. Aman não tem muito o que visitar. Possui um teatro romano e uma cidadela. Lá aproveitei a conexão com internet e passei dois pacientes dias para atualizar toda a galeria de fotos do site.

Cruz no alto do Monte Nebo

Segui para Madaba onde dormi e no outro dia fui para o Mar Morto passando por Monte Nebo, local bíblico onde existe uma Igreja em homenagem a Moisés e, desde o topo de sua montanha, é possível ver Jerusalém, Belém, Jericó, Mar Morto, Rio Jordão, West Bank, etc.

Dali desci para o mar morto e pedalei por toda sua extensão norte-sul. O Mar Morto fica no Great Rift Valley que se estende desde a Turquia até o leste africano.

É ali o ponto mais baixo da Terra com mais de 400 metros abaixo do nível do mar. Ele faz a divisa entre a Jordânia e Israel-Palestina. Em toda sua extensão existem bases do exército. Do meu lado esquerdo tinham montanhas áridas quase sem vegetação e na direita uma cerca e uma descida barrenta para o Mar, o dia estava um pouco embaçado mas era possível ver as montanhas de Israel e Palestina.

Mar morto

A brincadeira de flutuar no mar mais salgado do mundo compensou a falta de graça do caminho. Por causa da alta concentração de sal na água agente flutua muito mais do que na água doce e é possível ficar "sentado" no mar. Mas se entra água no olho arde pra caramba!

Existem alguns hotéis com acesso para o mar mas eu não estava disposto a pagar cinco dólares para passar dez minutos nadando. Resolvi procurar algum lugar perto da estrada onde eu pudesse entrar na água.

Encontrei um caminho e fui empurrando a bicicleta por uns 300 metros de barro. De repente me dei conta que eu estava no meio de uns tanques de guerra camuflados. Os soldados chegaram brincando "- American or Israeli?" Perguntaram - Noooo! Brazilian! Futbol, Ronaldo, samba! Respondi.

Os soldados foram bacanas mas o local é um pouco tenso. Ali eu estava exatamente na fronteira entre Israel e um país cuja maioria dos habitantes é de palestinos. Toda a região é minuciosamente controlada. Logicamente nem pensei em tirar a câmera fotográfica. Segui mais uns quilômetros. A informação que eu tinha era de que o caminho seria todo plano mas, de repente, vi uma montanha descomunal na minha frente. Seriam trinta quilômetros de subida e o sol já ia se pôr. Passei na frente de mais uma barreira do exército e mais uma vez fui convidado para um "jantar Ramadã". A cena dessa janta foi memorável. Numa mesa de concreto na beira da estrada colocaram uma bandeja de metal de um metro de diâmetro e uma montanha de arroz e pedaços de carne. Eram aproximadamente dez soldados ao redor da comida.

Alguns se empoleiraram descalços sobre a mesa, alguns sentados e outros de pé começaram um ataque que deixava clara a fome da tropa. Todos comendo com as mãos, os que estavam em pé deixavam arroz cair na cabeça dos que estavam sentados, os que estavam com os pés na mesa ajudavam com o dedão a manter a bandeja parada.

A cena medieval me divertiu e a comida estava uma delícia. Passada a "guerra" a tropa se dispersou para fumar e tomar chás. Encontrei por ali um engenheiro que estudou na Inglaterra e falava bom inglês. Conversa vai conversa vem fui convidado para dormir no acampamento com o pessoal que esta fazendo a tubulação para irrigar a região. Conversar com pessoas de costumes diferentes é sempre interessante. Minha conversa com o engenheiro acabou sendo sobre os tabus das nossas diferentes culturas. Pai de dois filhos ele me deixou impressionado com o conservadorismo da tradicional família jordaniana.

Da nossa conversa me lembro de alguns detalhes "- Pai tem que bater. Quando vivia na Inglaterra o governo estava discutindo sobre a proibição dos pais baterem nos filhos. Eu bato para ter controle. Filho não pode ter liberdade. Se meu filho quiser sair quero saber com quem, para onde, quando volta e sobre o que conversam. Já a filha não sai. Se quiser passear de tarde pode ir com o irmão ou comigo. Na Europa estão todos perdidos. Com 16 anos fazem o que querem. Por isso tem tanto problema, tanto gay, tanta criança que já é mãe."

Eu aproveitei para perguntar sobre o pagamento para casar. "- Está certo. Pagar para casar é uma boa solução. Se você paga caro pensa duas vezes antes de separar. Se paga pouco depois de um ano separa." Afirmou.

A conversa seguiu me impressionando, me lembro de perguntar se vivendo no acampamento ele não sentia falta da esposa que vive em Aman. "- Não tem problema, meu pai cuida dela." Respondeu. Se fosse no Brasil eu emendaria automaticamente um "-Como assim?!" mas a situação não permitiu. Apenas balancei a cabeça como quem entendeu, tentei inutilmente falar sobre liberdade, desisti e fui dormir. Novamente o pessoal do acampamento acordou às 3:30h, comeu e fumou o quanto conseguiram e voltaram a dormir. Eu acordei com o sol, pedalei um pouco e me escondi atrás de uma pedra para tomar meu café da manhã. Subi a tal montanha passando por uma área onde acredita-se ser a cidade de Sodoma e Gomorra. Existe um imenso cânion que fez a subida valer a pena. Pedalei apenas 30km e cheguei quase morto em Kerak. Em Kerak visitei mais um imenso castelo das Cruzadas. Fiquei na cidade dois dias. Senti que o corpo estava amolecendo e as montanhas estavam parecendo muito maiores. Arrumei mais um pouco de energia e segui um pouco mais para o sul. Pedalei pela King´s Road, uma rota tão antiga quanto as ruínas que ela liga. Fui viajando pelas histórias bíblicas, cidades perdidas, filmes de Indiana Jones, Lawrence da Arabia e de repente uma pedra acertou minhas costas.

King´s road

Outros ciclistas já tinham me comentado sobre essa "intifada ciclística" mas até então não tinha recebido nenhuma pedrada. Aqui as crianças têm uma incômoda mania de jogar pedras nos ciclistas. A situação se repetiu por mais umas quatro vezes.

Quando eram poucas crianças foi possível fazer a molecada parar mas quando vinham mais de dez o jeito era pedalar forte. Que coisa estranha!

O visual da estrada é lindo. São montanhas no deserto com alguns oásis. Mas a moleza no corpo continuou, pedalei muito devagar e o esforço reduziu a beleza. Passei todo o dia para pedalar pouco mais de 80 km.

O sol se pôs e tentei sem sucesso uma carona para terminar de chegar. A estrada ficou literalmente deserta pois era a hora em que todos estavam dentro das casas comendo. Segui pedalando devagar e o frio chegou forte. Passei mais umas três horas pedalando de noite e cheguei congelando na Reserva Florestal de Dana. Entrei no primeiro hotel que encontrei, tomei um bem vindo chá e um banho quente que me ressuscitou.

Castelo de Showbak - perto de Petra

Passei três dias em Dana e a moleza continuou. O parque é lindo mas me contive em ver de longe o imenso vale. Não desci os mil metros de altitude para fazer a tradicional caminhada que os outros visitantes fazem. Fiquei na cidade aproveitando a tranqüilidade da pequena e simpática vila de pedra para fazer um filminho para comemorar os dois anos na estrada.

Duas amigas que estavam indo de Dana para Petra levaram minhas bagagens e pedalei sem os alforjes. Mesmo assim segui fraco e chegando em Petra procurei um hospital.

Hospital - Consertando o vazamento no motor da bicicleta

Eu estava com disenteria amebiana e tive de parar a viagem por uns dias para me curar. Mais uma vez os problemas foram por causa de água e comida infectadas. Desconfio que peguei a tal ameba na Índia. Desde então eu já vinha me tratando com comprimidos mas não foi suficiente.

Em Petra tive um ótimo atendimento e um tratamento mais forte com injeções. Foram dez dias divididos entre o hospital e visitas às maravilhosas ruínas.

Petra são monumentais construções escavadas nas rochas pelo povo nabateu e possui uma atmosfera de "cidade perdida".

Para chegar ao centro da antiga cidade é preciso caminhar por mais de um quilômetro numa imensa fenda entre rochas com mais de 100 metros de altura.

Al Khazneh - Petra

De repente a fenda se abre num largo com uma imensa rocha esculpida - é o Al Khazneh (O Tesouro), uma construção feita no Séc. I a.C. e muito bem preservada - o cartão postal do país.

As esculturas nas pedras coloridas sobreviveram às forças naturais. Um dos poucos exemplos no mundo de uma arquitetura tão antiga.

Deste largo a caminhada segue por várias outras ruínas. É possível passar cinco dias caminhando e ainda terá ruínas para visitar.

A cidade é imensa e dispersa entre várias montanhas no deserto. A caminhada mais longa foi para visitar o Monastério.

Monastério com a luz do pôr do sol

Atravessei todas as ruínas do que foi o centro da cidade e uma montanha. Depois de uma hora caminhando cheguei no maior monumento de Petra. O incrível Monastério com sua fachada de 45x50 metros fica com uma cor linda no pôr do sol.

Esperei o sol se pôr e voltei caminhando de noite, outra experiência bacana pois nas ruínas ainda vivem alguns beduínos e passei algumas horas da noite com eles escutando música e tomando chá.

Beduínos em Petra

Os beduínos viviam nas cavernas entre as ruínas e foram relocados em 1984 para uma cidade cercana.

Hoje vivem do turismo alugando camelos e "jumentos-táxis" para os visitantes. São um povo extremamente simpático, vivem em tendas de pano preto, são nômades e vivem caminhando procurando pastos para seus rebanhos.

O Ramadã terminou. Ainda em Petra presenciei a festa, Eid al-Fitr, quando todos rezam juntos, visitam amigos e dão presentes.

Camelo - que bicho engraçado!

Não sei se por uma desanimação amebiana ou por pura realidade mas a tal festa é decepcionante. Os motivos religiosos são interessantes e tenho respeito por eles mas a celebração nas ruas é desanimadora - um bando de homens gritando sem conexão sem música ou cerveja. Mas por aqui gostam disso e se divertem. Finalizei o tratamento segui pedalando para Wadi Rum, um deserto paradisíaco no sul da Jordânia. Lá vi o outro lado da festa Eid al-Fitr. Uma simpática família beduína me convidou para a janta especial que fazem nessa data e acabei morando com eles por três dias.

Amigos beduínos em Wadi Rum

Essa foi outra janta memorável. Novamente num prato imenso serviram pães com grandes pedaços de carne e a cabeça do carneiro no topo da montanha de comida. Para comer usam a mão direita.

Nada de garfo e faca. O detalhe principal foi cortar os pedaços de carne apenas com uma mão. Era preciso enfiar o dedão na carne quente e tentar esmagá-la para retirá-la do osso. Tudo isso vendo a cara do pobre carneiro que foi morto ainda naquela tarde. Nunca me senti tão carnívoro.

Deserto de Wadi Rum

A família me adotou e até me deu um nome, Marmud. Na primeira noite passei sentando ao redor de uma fogueira na tenda conversando com o pai e os filhos. No segundo dia a mãe apareceu e me apresentaram as filhas.

No terceiro dia todos da vila já tinham andando na bicicleta, eu estava dando cambalhotas com o pai, cantando com os filhos, brincando com as crianças e dançando com as filhas.

A noite foi bem divertida. Passada a festa o pai me falou que no costume beduíno ninguém pode ter relações antes de casar. Se você perde a virgindade antes do casamento eles arrancam sua cabeça. Mas já era hora do Marmud ir embora. Já havia visitado o deserto e estava curioso para ver o Sinai. De Wadi Rum fui para Aqaba, peguei um ferryboar e atravessei para a África. Agora estou no Sinai mergulhando no Mar Vermelho. Grande abraço, Argus


PATROCÍNIO: Cultura Inglesa T-bolt Mountain Bike by Proton Edar
APOIOS: Atex Lajes Nervuradas, BHZ Arquitetura, SOL Serviços On Line, Telsan Engenharia, Prudential Bradesco e Rotary Club
*Os Textos completos você encontra no site: www.pedalandoeeducando.com.br

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