Pedalando e educando: 23º Relato

28° Diário - 20 de julho de 2003 Irã

Salam,

Nós em Esfahan

Colocamos nossos pés no Oriente Médio! Atravessamos o Paquistão de avião e agora estamos pedalando no Irã e conhecendo um pouco da riqueza do mundo persa com sua milenar e elegante arquitetura.

O nosso caminho natural de volta ao mundo seria desembarcar no Teerã e seguir para o eterno oeste mas fazer isso significaria deixar de conhecer as históricas cidades de Esfahan, Yazd e Persépolis. Para não arrepender depois, fizemos uma rápida visita de ônibus a estas cidades e agora voltamos a pedalar em direção a Turquia.

AINDA NA ÍNDIA
Os últimos dias da Índia foram debaixo de um calor de quase 50 graus. Não pedalamos nada e passamos todo o tempo de Delhi correndo atrás das burocracias de vistos para o Irã e Turquia.

Aproveitando a espera fizemos algumas reportagens e tentamos viabilizar palestras e exposições de fotografia mas organizar isso na Índia é uma missão quase impossível. Com exceção de uma simpática comunidade francesa que conhecemos e uma família indiana que nos recebeu como filhos, Delhi foi um período sem graça e sem novidades. Dentre várias opções de caminhos pós-Delhi decidimos atravessar o Paquistão de avião para evitar o calor (principalmente para a Alexandra que teria de pedalar com chador num calor de mais de 40 graus) e problemas do visto (da Embaixada em Delhi conseguiríamos apenas 8 dias para atravessar todo o país).

UM POUCO DA HISTÓRIA DO IRÃ
Em 1971 os iranianos comemoraram 2500 anos da fundação do Império Persa por Ciro o Grande. O Irã possui uma longa e rica história com várias invasões, conquistas e reinados. Dentre os fatos mais importantes estão a conquista pelos gregos (Alexandre o Grande) em 330 a.C.; a conquista pelos árabes entre os Sécs VII e XI d.C.; a invasão dos turcos no Sec. XI; a invasão dos mongóis no Séc XIII; a recente Revolução Islâmica em 1979 e a Guerra Irã X Iraque entre 1980 e 1988.

REVOLUÇÃO ISLÂMICA (1979)
Nos anos 70 a crise do petróleo e a corrupção do xá (título do então soberano do Irã) geraram a insurreição e a queda do governo. Aiatolá Khomeini, o líder dos cléricos xiitas e oposição do antigo poder, se tornou autoridade suprema do país, Em 1979, 98,2% da população votou a favor da formação da primeira República Islâmica do mundo. Uma onda de violência e massacres à oposição ocasionou o desaparecimento de mais de13 mil pessoas nos anos seguintes. O novo ditador religioso impôs várias regras radicais de conduta e fortaleceu os poderes do clero. Dentre as várias atitudes radicas ficou famosa a sentença de morte do escritor anglo-indiano Salman Rushdie por “ofender” o Islã com seu livro Versos Satânicos.
Frases contra os EUA em diversos lugares

GUERRA IRÃ X IRAQUE (1980-1988)

Em 1980 o então presidente iraquiano Saddam Hussein, aproveitando a situação de caos político do Irã, tentou invadir uma área petrolífera de fronteira (Khuzestan) alegando que esta era uma região histórica do Iraque. Durante essa guerra os EUA ficaram do lado do Iraque e apoiaram Saddam Hussein. Em 1982 Irã conseguiu recuar as tropas iraquianas e aproveitou a situação para invadir as cidades de Karbala e Najaf no Iraque, o que fez com que a guerra se estendesse por mais seis anos. Em 1988 os EUA explodiram um avião civil iraniano que voava sobre o Golfo Pérsico. A guerra aumentou a antipatia dos iranianos aos EUA e hoje é fácil encontrar faixas contra os americanos (conhecidos aqui como o “grande satanás”) em vários locais do país.

O saldo final da estúpida guerra foi mais de um milhão de mortos e uma destruição incalculável para as cidades e meio ambiente. E as fronteiras se mantiveram como antes.

IRÃ HOJE Irã é o quarto maior produtor de petróleo do mundo (1. Arábia Saudita, 2. EUA, 3. Federação Russa) o que significa 82,5% da renda com exportações do país (2000). Além do petróleo o país conta também com a exportação de seus famosos tapetes, pistaches e caviar. A população é de 71,4 milhões de habitantes (2001) e mais de 95% praticam o islamismo. A língua oficial é o persa e poucos falam inglês. O clima é subtropical árido na maior parte e subtropical de altitude nas montanhas Zagros.

O atual governo é regido por dois poderes: O líder religioso, aiatolá Khamenei (sucessor do falecido aiatolá Khomeini) e o presidente eleito Khatami. Apesar de existirem eleições não existe democracia pois os candidatos são escolhidos pelos líderes religiosos.

Alunas com chador

O governo teocrático impôs várias leis de comportamento que são as bases da crescente insatisfação popular (principalmente de estudantes, mulheres e intelectuais) em todo o país. As mulheres são extremamente discriminadas. A partir dos nove anos de idade elas são obrigadas a usar o chador, pano que cobre a cabelo, blusa de manga larga e calça comprida. Mesmo no calor dos desertos! Os mullah, cléricos islâmicos, consideram que essas partes do corpo excitam os homens e não devem ser mostradas. Na teocracia o desrespeito às leis religiosas é um pecado punível e existe uma polícia especial para fiscalizar essas leis. As mulheres têm vagão separado no metrô e lugar dividido nos ônibus. Como se não bastasse tanto sofrimento elas também não podem ir ao campo de futebol! Não existe liberdade de imprensa e as televisões com satélite são proibidas, apesar de existirem várias.

Nas diferentes famílias que nos hospedamos encontramos quem ame e quem odeie a revolução e o atual governo. Os que odeiam nos relatam fatos e descrevem a política do país, são geralmente pessoas com acesso a informações e consciência política. Os que amam falam do governo com uma paixão religiosa mas não conseguem descrever exatamente o motivo da adoração. - Khomeini foi bom! Boa pessoa! Bom coração! Pessoa caristmática! Nos respondem. Todos que “amam” o governo lêem apenas jornais censurados e nem sequer sabem que Khomeini matou os políticos da oposição. – Não! Nunca! Ele nunca matou ninguém. Nos respondeu um iraniano que possui uma imensa foto do líder na parede da casa.

As demonstrações públicas de insatisfação são duramente reprimidas. Não vimos nenhuma faixa ou movimento de rebeldia nas ruas mas escutamos muitas reclamações. Nas últimas semanas movimentos estudantis exigiram a realização dos compromissos feitos pelo atual presidente que, quando candidato, prometeu reformar as leis estabelecidas na Revolução Islâmica e até hoje não reformou nada.

Atualmente a imprensa internacional tem chamado muita atenção para os problemas do governo iraniano mas é preciso ter cuidado com as interpretações das reportagens. O Oriente Médio tem sido o principal alvo de invasões dos americanos que já ocuparam o Afeganistão e o Iraque alegando uma luta contra o terrorismo, armas nucleares e governos ditadores. O Irã é um ambicioso alvo, além do petróleo e da posição estratégica entre o golfo Pérsico, o mar Cáspio e os países já dominados, o país possui também uma situação política radical e instável que proporciona um perfeito suporte para a demagogia ianque de “salvar” mais um país.

TEERà – A atual capital do Irã
Logo ao desembarcar em Teerã montamos as bicicletas no aeroporto e saímos pedalando. No caminho para o centro fomos vistos por uma turma de ciclistas que nos deu as boas vindas ao país e nos acolheu com casa e boa comida. Em breve percebemos que aqui muitos possuem uma espécie de adoração por estrangeiros e nos tratam muito bem. De uma forma muito simpática os que sabem falar inglês se aproximam com três frases básicas – De onde vocês são? Posso ajudá-los? Sejam bem vindos ao Irã.

Ficamos impressionados com o desenvolvimento. Vimos vários prédios, boas avenidas, bonitos jardins e um povo educado. A cidade é limpa e em vários lugares é possível encontrar até água potável pública! Um luxo. Teerã fica nos pés das montanhas Alborz (5000m) e agora no verão chega a temperaturas de 40 graus.

Rota da Seda
Teerã foi um dos pontos mais importantes da Rota da Seda e agora seguiremos por uma das mais famosas ligações dessa rota – de Rey (parte do complexo urbano de Teerã) até Constantinopla (atual Istanbul) na Turquia. Ficamos três dias na capital onde por coincidência houve uma feira internacional que a patrocinadora Proton estava expondo. Passamos um dia na feira, visitamos alguns bazares e fomos para Esfahan.

Praça Emam Khomeini

ESFAHAN – Antiga capital Persa
Esfahan foi a capital persa no Séc XVI e hoje é fácil perceber sua riqueza cultural através de sua imponente arquitetura. Segundo o Iran Touring and Tourism Organization of Esfahan, a cidade possui mais de 2000 monumentos históricos e mais de 1000 deles foram construídos entre os Sécs XVI e XVIII.

Na avenida principal existe uma pista para ciclistas, um grande símbolo de civilidade. A pista vai até o rio Zayandeh Rood cujo percurso urbano é ambientado com muitas árvores e gramados interrompidos apenas pelas suas várias pontes históricas.

A imensa praça Eman Khomeini (500m x 160m) e os palácios e mesquitas ornamentados são um grande museu vivo da cultura iraniana e islâmica. Nos bazares, entre milhares de lojas de tapetes, vimos artesãos fazendo minuciosos trabalhos de marchetaria e prata. Numa das lojas encontramos um artista que há 3 anos esta trabalhando para esculpir uma mesa para o presidente.

Mesquita Jameh em Esfahan

Apesar de todas as maravilhas do Irã, segundo os donos de hotéis e restaurantes, depois de 11 de setembro o turismo internacional praticamente acabou. Os pontos turísticos estão sempre movimentados mas nós éramos uma exceção ocidental no meio do turismo local.

YAZD – Cidade antiga no deserto
Até a invasão árabe no Séc. VII, a religião oficial da Pérsia era o zoroastrismo. O surgimento dessa religião foi na cidade de Yazd, no deserto iraniano.

O fogo é o elemento sagrado do zoroastrismo pois, diferente dos outros elementos da natureza, ele sobe e simboliza o caminho para o céu. A higiene e honestidade são as bases da religião. Quando uma pessoa morre o corpo é colocado no alto das Torres do Silêncio para que o corpo seja consumido pelas aves. Dessa forma o corpo não polui a terra sendo enterrado e não polui o ar sendo cremado.

Na região faz muito calor e quase todas casas possuem um interessante sistema de ar condicionado natural. O ar externo se esfria passando por um compartimento profundo onde existe lençol de água e é conduzido pela casa através de circulação cruzada até chegar nas chaminés onde o ar quente é retirado. Não funciona tão bem como o ar condicionado elétrico mas seguramente é mais saudável, ecológico e econômico.

SHIRAZ – Persépolis
Persépolis foi a capital onde Ciro iniciou o império Persa. Passamos três horas caminhando e não conseguimos visitar todas as grandiosas ruínas. Foi aí que ocorreu a invasão grega de Alexandre o Grande que colocou fogo na cidade em 330 a.C.

Persépolis

 

CURIOSIDADES
O tapete persa funciona como mesa, cama e chão e quase todas as casas possuem os pisos totalmente cobertos por eles.

Porta de todas nações

Quando somos convidados para ficar em casas iranianas tiramos os sapatos, vamos para uma sala, nos sentamos nos tapetes para uma primeira conversa (ou mímica) e tomamos chás.

Depois colocam um plástico sobre o tapete e comemos no chão. Ao anoitecer nos trazem os travesseiros e dormimos no mesmo local que conversamos e comemos.

Túmulos da dinastia aquemênide (553 a 330 a.C.)

É comum ver pessoas fazendo piqueniques na cidade. Nas sextas-feiras, feriado religioso do muçulmano, as praças e gramados ficam lotados.

As famílias carregam suas chaleiras, pistaches, muitas frutas, sucos e pães e passam a tarde de conversa fiada. Esta é uma excelente oportunidade para filar uma bóia. Basta passar de bicicleta e parar do lado de um bom piquenique que sempre somos convidados. Não tem erro.

No islamismo é proibido beber álcool. Para substituir a “função social” dos bares existem casas de chás onde os homens se reúnem em torno das water pipes, garrafa-cachimbo com um mecanismo para o fumo passar pela água e uma mangueira que é distribuída pelos fumadores da mesa.

Detalhe de um tapete persa tradicional

O iraniano possui grande consciência de política externa e conhecem minuciosamente suas relações diplomáticas com diversos países. Somos bem vindos pois a Alemanha é a principal parceira econômica do Irã e foi contra os EUA na invasão ao Iraque. O Brasil é aparentemente neutro nas questões econômicas e militares mas possui o futebol que é meu eterno passaporte de amizade.

KHORAM ABAD – De volta ao rumo oeste

Depois das visitas às cidades do leste voltamos a pedalar para o oeste e estamos passando numa região perto da fronteira com o Iraque. O calor está forte e estamos pedalando somente pela manhã. Tentaremos estender nosso visto para podermos pedalar pelo litoral do Mar Cáspio antes de cruzar a fronteira. Grande abraço, Argus Obrigado aos amigos da Concord Travels que nos apoiaram na Índia e ao Iran Touring & Tourism Organization que tem nos apoiado para visitar os monumentos históricos do Irã. “Deus é muito grande para pertencer a apenas uma religião.” Frase na camisa de um iraniano


PATROCÍNIO: Cultura Inglesa T-bolt Mountain Bike by Proton Edar
APOIOS: Atex Lajes Nervuradas, BHZ Arquitetura, SOL Serviços On Line, Telsan Engenharia, Prudential Bradesco e Rotary Club
*Os Textos completos você encontra no site: www.pedalandoeeducando.com.br

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