Pedalando e educando: 22º Relato

27° Diário - 10 de junho de 2003 Himalaia Indiano - Índia

Namastê, Subimos novamente as montanhas do Himalaia, dessa vez no estado indiano de Uttaranchal. Encontramos muitos peregrinos hinduístas, visitamos vários templos e seguimos alguns afluentes do Ganges. Descemos e agora estamos na sagrada cidade de Rishikesh. Aqui, num calor de quase 50 graus, estamos comemorando 15 mil quilômetros pedalados e um ano e meio na estrada!

Mapa da rota Índia-Nepal

Estávamos receosos com a volta à Índia, principalmente com os “motoristas assassinos”. Apesar da densidade de veículos ter sido bem menor e a viagem ter sido mais tranquila, chegamos à conclusão de que a única forma de sermos respeitados seria nos fantasiando de vacas. Mas a segunda impressão surpreendeu e ficamos fascinados com a região que conhecemos, o estado de Uttaranchal. No Himalaia indiano passamos por incríveis florestas, vimos e escutamos milhares de pássaros, acampamos em várias pequenas cidades, curtimos os lindos visuais das montanhas, acompanhamos vários rios e presenciamos de perto a peregrinação dos Sadhus.

 

Plantação em Uttaranchal

A densidade de acontecimentos foi tão grande que é difícil descrever tudo. Preferi então narrar um dos nossos dias numa lua cheia de maio. Acordamos com o nascer do sol na barraca que estava montada ao lado de uma estrada secundária perto de Champawat. Ali, na altitude de 2000m, quase todas as árvores são Pinus e as vilas possuem apenas um pequeno mercado e algumas dezenas de casas.

Existem poucos carros porque a dificuldade das curvas e perigo dos despenhadeiros fazem com que quase todos utilizem as estradas principais. Era possível ver as montanhas nevadas do Himalaia mas, mesmo com o visual maravilhoso, não encontramos muitos turistas. Quando abrimos a barraca já tínhamos dois vizinhos que estavam matando uma ovelha na árvore ao lado para vender na cidade que ficava a duzentos metros do nosso acampamento. Repetimos o rotineiro processo de desmontar a barraca e armar nossas bagagens na bicicleta.

Em menos de meia hora estávamos numa loja de chá no pequeno centro. Pedimos chás com leite, omeletes e pães e respondemos a uma dúzia de pessoas que sempre aparecem para perguntar sobre a viagem ou pedir para andar nas bicicletas. Durante o café da manhã apareceu um indiano fazendo uma apresentação para os moradores locais. Ele começou a tirar cobras de cestas, tocar uma flauta e no final tirou também uma Naja e um escorpião. Ficou brincando com os bichos, guardou tudo e foi embora.

Desenho para celebrar o casamento hinduísta

Pagamos nossa conta e fomos convencer a criançada que estava pedalando nossas bicicletas de que era nossa hora de partir. Um dos moradores, fascinado com as bicicletas, pediu-nos mais alguns minutos pois estava providenciando o fotógrafo da cidade para tirar uma foto conosco.

Tiramos as fotos, despedimos de aproximadamente cem pessoas que já tinham se concentrado ali e iniciamos a pedalada. Muitas pessoas caminham nas estradas e logo nas primeiras curvas encontramos dois Sadhus fumando Ganja, costume entre muitos da região.

Nos convidaram para uma parada e depois de um papo improvisado em “indigles” seguimos mais alguns quilômetros e avistamos um casamento numa pequena vila. Passamos vagarosamente para ver as roupas coloridas das mulheres e o irmão da noiva nos parou e nos convidou para a festa.

Preparação da noiva

Aceitamos o convite e em uma hora já tínhamos sido apresentados para toda a festa. O incidente de aparecermos na festa foi visto com muitos bons olhos pela família. Enquanto no Brasil seríamos os “bicões da festa” aqui nós fomos considerados Deuses que estavam trazendo boa sorte para os recém-casados.

Era um casamento arranjado, ou seja, os pais decidiram com quem os filhos iriam se casar numa mistura entre religiosidade e comércio. Por via de regra são assim os casamentos da Índia.

O pai da noiva paga para o noivo. A transação é explícita e até a roupa do noivo é feita de dinheiro para expressar a cortesia. Durante a cerimônia as famílias ficam em volta de um lindo desenho em pó xadrez feito no chão. Ali são feitas várias preces, entregas de malas com dinheiro, lavagem de pés, preparação da noiva com ornamentos, desejos e promessas.

Casamento

A poucos metros da cerimônia familiar estavam os moradores da vila concentrados no grande banquete de dalbhat (prato regional com arroz, vegetais e lentilha) improvisado num dos patamares de plantação. O pai da noiva ofereceu comida para toda a vila. E num outro canto estava uma turma de homens cantando e dançando ao som de uma banda bêbada.

Por sinal, estavam, com exceção da família, todos bêbados mas não vimos sequer uma garrafa de álcool. No hinduísmo é proibida a bebida alcoólica e, quando possuem uma garrafa escondida, bebem demais e perdem o controle. Dançamos, comemos, tiramos muitas fotos e conversamos com quase todos da festa. A família da noiva nos convidou para dormirmos na casa mas decidimos seguir viagem e encontrar um lugar calmo para descansarmos.

Início do Rio Ganges

Pedalamos mais um pouco apreciando o lindo vôo das águias e no pôr do sol encontramos um pequeno bangalô turístico com um restaurante. Tomamos nosso banho frio de balde e terminamos o dia comendo arroz com feijão e manga de sobremesa.

Nos outros dias não participamos de nenhum outro dos vários casamentos de maio mas a viagem seguiu cheia de acontecimentos e bons momentos.

Passamos em Uttaranchal durante a alta estação do turismo. Muitos fogem do terrível calor do plano viajando para o frio das áreas mais altas da Índia. Além dos turistas, os meses do verão são utilizados também por milhares de Sadhus de todos os cantos do país.

Sadhus em peregrinação pelas montanhas da Índia

Eles fazem peregrinação pelas montanhas e rios sagradas em busca de purificação. Com um pequeno cantil de água e muita disposição eles sobem com fome as montanhas do Himalaia para atingirem os topos de onde nascem as águas do Ganges – o rio que alimenta a alma do Hinduísmo.

Uma das correntes dos peregrinos é a ioga. Com o conhecimento e treino muitos Sadhus conseguem ficar, quase sem roupa, sentados no frio da neve por horas e manter o equilíbrio. Nesse momento alguns atingem o nirvana que é, segundo o dicionário Aurélio, “o estado de ausência total de sofrimento; paz e plenitude a que se chega por uma evasão de si que é a realização da sabedoria”.

Tridente, símbolo do Deus Shiva

A cidade com maior concentração turística é a sagrada Kedarnath. Ela possui um templo no alto das montanhas que é o objetivo de muitos peregrinos. Nosso ponto mais alto foi em Chopta a mais de 4000m de onde pudemos ver, num ângulo de 360 graus, os topos das montanhas nevadas do Himalaia. Várias cidades possuem templos medievais de pedra com geometrias muito parecidas com os famosos templos de Khajuraho (Veja Relatório 01 da 3a Etapa) e alguns possuem também esculturas eróticas.

Templo medieval em Gopeshwar

Geralmente estes templos possuem um compartimento com uma cama onde vive o Baba, o homem sagrado do hinduísmo. Os sinos possuem um simbolismo especial e muitos hinduístas os penduram nos templos para fazerem pedidos ou agradecerem realizações.

Além da preciosa arquitetura dos templos, as montanhas também possuem casas com minuciosas esculturas nas janelas e portas. Mas a grande maioria das casas são simples com telhados de pedra, paredes de tijolos, rebocos de cimento e portas e janelas de madeira.

O noroeste da Índia é o berço do povo cigano. Daqui eles teriam migrado para a Europa Central entre 950 e 1000 d.C. Atualmente esse povo nômade está disperso por todo o mundo e somente na Europa são estimados em 6 milhões.

Detalhe de uma janela

O recém-formado estado de Uttaranchal foi separado de Uttarpradesh nos últimos anos e ainda possui vários problemas aparentemente políticos. A grande maioria da população vive da agricultura e a paisagem é marcada pelos cortes das montanhas em curvas de nível para as plantações.

O turismo religioso está crescendo e no momento as principais estradas estão sendo duplicadas para suportar a demanda de tráfego. Mesmo com o imenso potencial hidrelétrico das várias quedas d’água, a região tem constante falta de energia e também falta de água.

Terminamos nossas pedaladas nas montanhas e agora estamos na cidade sagrada de Rishikesh, na beira do rio Ganges. Daqui seguiremos para Delhi. Obrigado a todos que me enviam mensagens pelo site ou pelo email. Elas são uma bela força para os momentos difíceis da viagem!

Rishkesh

Grande abraço, Argus “Mestre não é quem sempre ensina, mas quem de repente aprende”. (Guimarães Rosa) Parabéns Atex pelos 12 anos de trabalho!


PATROCÍNIO: Cultura Inglesa T-bolt Mountain Bike by Proton Edar
APOIOS: Atex Lajes Nervuradas, BHZ Arquitetura, SOL Serviços On Line, Telsan Engenharia, Prudential Bradesco e Rotary Club
*Os Textos completos você encontra no site: www.pedalandoeeducando.com.br

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