Pedalando e educando: 18º Relato

23° Diário - 12 de fevereiro de 2003 Bodh Gaya - Índia

Namastê,

Chegamos na Índia, o segundo pais mais populoso do mundo. A miséria do povo contrasta com a riqueza cultural e religiosa que faz do país um dos mais interessantes que passamos até agora.

De Calcutá, fronteira da Índia com Bangladesh, pedalamos para oeste ate Bodh Gaya e ficamos espantados com o perigo das estradas. Para evitar o risco resolvemos ir de trem para três imperdíveis cidades - Varanasi, Agra e Khajuraho - e voltamos para Bodh Gaya de onde estamos pedalando em direção ao Nepal. Nossa idéia agora e trocar o perigo e estresse nas estradas da Índia pela paz e desafio das montanhas do Himalaia.

Eu na estrada

A Rota da Seda (R.S.) e a Rota da Companhia das Índias Orientais (C.I.O) promoveram, em diferentes épocas, o intercâmbio cultural e comercial entre o Oriente e a Europa. A C.I.O. (Séc. XVII ao Séc. XIX d.C. - maioria marítima) praticamente substituiu a R.S. (apogeu no Séc. II d.C. - maioria terrestre) pois através do mar os produtos tinham menos taxas no percurso. A C.I.O. e a R.S. se interceptam e no momento estamos num país que foi relevante para ambas.

 

Calcutá foi a capital britânica na Índia e um dos mais importantes entrepostos comerciais da C.I.O.. Vimos várias imponentes construções coloniais inglesas em péssimo estado de conservação. A degradação da cidade é tão grande que foi difícil imaginar ali um local historicamente tão importante. A confusão urbana se estende pelo rio Hooghly e passamos um dia e meio pedalando na beira do rio para podermos sair da cidade.

Quase toda Índia é plana, com exceção do norte, ao pé do Himalaia. Mas a paisagem fica desapercebida pela intensa presença humana. É mais de 1 bilhão de habitantes, um sexto da população mundial, e o norte do país, por onde estamos passando, está concentrada mais de 70% da população. É gente demais! Foram precisos alguns dias para acostumar e começar a entender o pais.

Maquete da Índia

A boa hospitalidade indiana é famosa e muitas vezes tão grande que se confunde com invasão de privacidade. Eles ficam maravilhados com qualquer turista e não se acanham de, sem convite, entrar no quarto do hotel, sentar na cama e ficar horas batendo papo.

Qualquer pequena parada na estrada amontoa dezenas de curiosos que sempre perguntam de onde somos, para onde vamos, qual o propósito da viagem, o que achamos da Índia, quanto custam as bicicletas e, se possuem uma câmera, pedem para tirar fotos conosco. Para um brasileiro isso é até bacana, lembra um pouco o calor humano sulamericano, mas facilmente conseguem ultrapassar nosso expansivo limite latino de amizade.

A história da Índia está diretamente relacionada com suas especiarias - pimenta, açafrão, canela, etc. - que atraíram os mercadores de todo o mundo e culminaram na colonização inglesa. (1690 - 1947). As comidas daqui fazem jus aos fatos e, por mais terrível que seja o restaurante, os temperos são sempre incríveis.

Restaurante na beira da estrada

Quase todas comidas são vegetarianas e servidas em pratos descartáveis feitos de folhas, usam as mãos para comer e arrotam. Comem com arroz ou deliciosos pães (tipo pão Sírio) feitos na hora. Os chás também são deliciosos e incrivelmente baratos. Ambulantes vendem chás em pequenos copos descartáveis de cerâmica que custam menos de cinco centavos de dólar.

Gandhi, o grande revolucionário da Índia, levou o país a uma independência pacífica em 1947. Ele foi assassinado, assim como grande parte de sua família, por fanáticos religiosos. Apesar do hinduísmo ser a principal religião o país é um bolsão de diversidades étnicas e religiosas com vários conflitos internos.

"Um país onde não só lutam muçulmanos contra hindus, mas também tribo contra tribo, casta contra casta; uma sociedade cujo entrelaçamento se baseia numa espécie de equilíbrio resultante da repulsão geral e do exclusivismo constitucional de todos os seus membros". -Marx

Gandhi

Hoje o pais passa por grandes problemas sociais, econômicos e ambientais. A miséria e o desemprego são os maiores problemas. Mais de 70% da população está desempregada e 44% é analfabeta (2000). A economia é baseada na agricultura e também produzem aço, tecidos, açúcar, cimento, juta e fertilizantes. Uma das indústrias mais fortes é a de softwares que cresceu muito devido aos incentivos do país para as artes exatas e a língua oficial inglesa, herança da colonização. A indústria do cinema também é forte e está concentrada em Bombay.

A maioria das pessoas se movem a pé, de bicicleta ou de moto e os alunos vão para as escolas fechados em uma gaiola puxada por um táxi-bicicleta. As estradas são terríveis. Vimos dezenas de caminhões capotados e um ciclista morto atropelado. Urgh! O trecho que passamos está sendo duplicado e a estrada velha possui apenas duas pistas sem sinalização e acostamento. Vários carros possuem a frase "por favor buzine" e todos respeitam o pedido. A lei é clara - quem tem a buzina mais forte tem a preferência. Além do perigo e do barulho temos, também em excesso, monóxido de carbono dos velhos motores.

Todos são muito simples e pouco influenciados pelos costumes ocidentais. Não vimos supermercados, carros modernos, redes de sanduíches, fast-foods ou prédios envidraçados. O homem "tradicional" usa calça comprida, camisa de gola, pinta a unha e usa bigode. As mulheres usam roupas coloridas e usam uma pinta na testa, a Tika, para a boa sorte hindu. Escovam os dentes com galho de árvore e secam estrume de vaca nas paredes para usarem depois como carvão na cozinha. Mas o costume mais impressionante é o de fazer as necessidades em público. 

Depois de presenciar centenas de pessoas tranqüilamente fazendo cocô nas ruas fui surpreendido por um guarda que tentou me extorquir dez dólares por eu estar fazendo um honesto xixi numa esquina. A gargalhada que não consegui segurar deixou o guarda um pouco bravo mas, papo vem papo vai, ele acabou me liberando da multa.

De Calcutá seguimos para Bodh Gaya e passamos por uma região onde tivemos oportunidade de visitar uma das maiores minas de carvão do país. O carvão é responsável pela produção da maioria da energia elétrica do país.

Carregadores de carvão no nordeste da Índia

A região é perigosa e vários hotéis não permitiram que nos hospedássemos. Evitam estrangeiros pois muitos são criminosos foragidos. Em Asansol passamos mais de duas horas debaixo de chuva até encontrar um hotel que nos aceitasse. Toda a cidade fecha depois das 22:00 e as ruas ficam desertas.

Alem do perigo de assaltos a região também possui "elefantes selvagens". Passamos por uma cidade onde um elefante louco tinha matado cinco pessoas no dia anterior. A perda do habitat natural fez desses animais um grande risco para as pessoas e a cada ano aproximadamente 300 pessoas são mortas por elefantes no nordeste do pais.

Templo Budista em Bodh Gaya

Em Bodh Gaya resolvemos deixar as bicicletas num amigável mosteiro tibetano e visitar três imperdíveis cidades - Varanasi, Agra e Khajuraho - usando trem e ônibus.

Varanasi e uma das cidades mais sagradas da Índia. Nos hospedamos na parte antiga, na beira do sagrado rio Ganges e, durante os três dias de estadia, nos impressionamos com a magia que a força espiritual do Ganges exerce sobre as pessoas. É um local que assusta, intriga e fascina.

Rio Ganges em Varanasi

O local é sagrado para nascer e morrer. Milhares de pessoas vão para a cidade para passarem seus últimos dias de vida e poderem ter seus corpos queimados e as cinzas lançadas no Ganges. Quando a pessoa não possui uma casta, classe de hierarquia social, os corpos são lançados no rio sem serem queimados (por ano são lançados no Ganges aproximadamente 45.000 cadáveres ou parte deles sem cremação).

Banho no rio Ganges

Alugamos um pequeno barco para vermos o nascer do sol e os milhares de fieis bebendo, banhando e lavando as roupas nas escadarias da beira do rio. Nas águas do Ganges, entre flores, cinzas e cadáveres de humanos e de vacas, vimos um corpo se mexendo. Era uma das pessoas esperando pela morte com uma alma em total delírio. Esta cena era vista com naturalidade entre os indianos que passavam. Aqui é preciso esquecer a racionalidade e tentar não compreender tudo. Seria um erro tentar trazer todo esse espetáculo para a nossa lógica.

 Hinduísmo

Segundo o hinduísmo a vida possui quatro estágios - estudante, dono de casa, forest dweller (?) e mendigo (Sannyasi). Cada estágio é perceptível pelas roupas e comportamento. Em Varanasi encontramos muitos Sannyasi, pessoas que abandonaram todos os bens materiais, carregam apenas a roupa do corpo, um pote de água, fazem meditação e vivem da doação de comidas e esmolas. Vários possuem grandes barbas, cabelos despenteados, andam quase pelados ou cobertos por cinzas.

A Índia é repleta de personagens exóticos e em Varanasi foi onde encontramos sua maior concentração. Por coincidência estivemos na cidade durante o Sivaratri Festival, a festa do Deus Shiva - criador, destruidor e senhor da dança. Várias pessoas, inclusive excêntricos turistas, caminham descalços com panos enrolados no corpo, cabelos despenteados, cara pintada e um tridente na mão simbolizando Shiva.

Sivaratri Festival

Também estamos presenciando a "copa do mundo indiana" onde o esporte principal é o críquete. O grande clássico Índia x Paquistão ocorreu junto com o Festival e todos saíram para comemorar a vitória. O caos foi generalizado, a bagunça foi tanta que até consegui compensar a saudade do carnaval brasileiro junto com trios elétricos, música e dança. Aqui os princípios hinduístas de não-álcool e não violência são colocados em prática e, mesmo com tanta gente, não vi absolutamente nenhuma briga ou discussão.

Varanasi é um emaranhado de antigas e estreitas vielas de pedra cheias de curva e escadas. As antigas construções são muito bonitas mas o saneamento básico praticamente não existe e as ruas possuem um cheiro forte, muito esgoto e lixo. É preciso tomar cuidado com as fezes e restos de comida que são lançados das janelas.

De Varanasi seguimos para Agra, uma das cidades mais visitadas da Índia por causa da história amorosa e a beleza do Taj Mahal.

Taj Mahal

No Séc. XVII o rei Shah Jahan, em prova de amor à sua falecida esposa, mandou construir um memorial que deveria ser o mais imponente do mundo. Para realizar os desejos do rei foram gastos todas as riquezas do império e por isso Shah Jahan foi condenado pelos próprios filhos e ficou preso durante os oito últimos anos de sua vida.

O Taj Mahal foi construído em mármore branco e vários detalhes com pedras semi-preciosas trazidas de vários países. O trabalho é magnífico, uma mistura de arquitetura islâmica e hindu com vários detalhes em "pietra dura", desenhos no mármore feitos com pedras coloridas, de provável influência européia.

Durante a colonização inglesa um Lord teve a estapafúrdia idéia de desmontar o Taj Mahal e vender suas peças na Inglaterra. A destruição felizmente foi cancelada por falta de compradores.

Interior do Red Fort

Agra foi um importante centro político. Com pequenas interrupções, a cidade revezou a capital com Delhi e construiu o mais importante forte da Índia. O forte é tão ou mais impressionante que o Taj Mahal e também teve uma arquitetura primorosa. Sua construção começou no Séc. XVI e, além de servir como fortaleza do palácio imperial, foi usado como palco para lutas entre gladiadores, tigres e elefantes. As pedras vermelhas, extraídas do próprio local, dividem o espaço com os mesmos mármores brancos e detalhes de "pietra dura" do Taj Mahal.

Existe uma história de que o rei iria receber a visita do Embaixador da Pérsia no forte e resolveu colocar uma cerca na frente do seu trono. Assim, todos que quisessem vê-lo deveriam entrar ajoelhados sendo forçados a reverenciar o trono. O Embaixador persa sabiamente se ajoelhou e entrou de costas fazendo a reverência com a bunda.

De Agra seguimos para Khajuraho, local onde estão incríveis templos construídos nos Séculos X e XI d.C. repletos de elegantes esculturas eróticas.

Pôr do sol nos templos de Khajuraho

A pequena cidade é talvez a mais tranqüila que conhecemos no país. Seus templos ficaram escondidos pela floresta até o Séc. XIX quando iniciaram a limpeza e reconstrução. Apesar de muitas esculturas terem sido saqueadas os templos estão restaurados e bem conservados. São templos hindus com simetrias e curvas perfeitas e vários detalhes eróticos que demonstram a liberdade com que o corpo e as relações humanas eram tratadas na época.

Detalhe dos templos em Khajuraho


Caminhamos pela parte antiga da cidade e vários dos simpáticos moradores nos convidaram para entrar nas suas casas. Em uma das visitas encontramos várias mulheres fazendo desenhos de hena nas mãos para uma festa de casamento.

Pintura de hena para cerimônias religiosas

De Khajuraho voltamos para Bodh Gaya, pegamos as bicicletas e estamos seguindo em direção ao Nepal.

Grande abraço,
Argus


PATROCÍNIO: Cultura Inglesa T-bolt Mountain Bike by Proton Edar
APOIOS: Atex Lajes Nervuradas, BHZ Arquitetura, SOL Serviços On Line, Telsan Engenharia, Prudential Bradesco e Rotary Club
*Os Textos completos você encontra no site: www.pedalandoeeducando.com.br

<< Pedalando e educando: 17º Relato                                                      Pedalando e educando: 19º Relato>>


Pedalando e educando: O Projeto