Pedalando e educando: 39º Relato

44° Diário - dezembro de 2004 Pernambuco 

Olá amigos, Bem vindo novamente o Brasil ! Cheguei mas ainda estou longe de casa – de Recife até Cordisburgo é a mesma distância de uma viagem da França até a Turquia! Ainda tenho muito chão. A receptividade do pernambucano me fez parar a viagem por mais tempo do que eu imaginava e somente agora estou recomeçando as pedaladas.

 

TRAVESSIA DO OCEANO ATLÂNTICO DE VELEIRO  500 ANOS DE COLONIZAÇÃO
Atravessar um oceano de avião comercial não tem muita graça e resolvi guardar esse pequeno trecho da viagem para escrever sobre a travessia do oceano Atlântico de veleiro que fiz no ano 2000 - Venezuela, Sint Marteen , Portugal (Açores, Lisboa, Madeira), Cabo Verde e Brasil. A viagem de veleiro é muito diferente da de bicicleta. É muito mais introspectiva e silenciosa, requer um planejamento mais preciso e não dá margem a erro e improvisações. Foi um bom aprendizado e acredito que foi o embrião dessa minha atual aventura. A regata que participei marcou os 500 anos da chegada dos portugueses no Brasil. Após quatro meses velejando vagarosamente com a cabeça a mil por hora, a expectativa da chegada em Santa Cruz de Cabrália, Bahia, era grande.

Indígena que hoje é catador de papel na cidade

Não tínhamos muitas mídias no barco e estávamos um pouco desinformados das notícias em terra firme. No dia 21 de abril de 2000, ancoramos, pegamos uma mochila, descemos do barco e caminhamos até o centro das comemorações.

Em todo o caminho vi milhares de policiais defendendo a entrada desse centro e logo soube que estavam ali para proibirem mais de cem povos indígenas de se reunirem nesse local. Vários indígenas e militantes da causa foram espancados e retirados à força. Continuei andando e no tal centro estavam fazendo as comemorações oficiais dos 500 anos com a inacreditável hipocrisia de, na frente de câmeras, “presentear” o povo indígena com um shopping em forma de ocas e uma cruz católica imensa na praça principal – cruz credo.

“Os brancos precisam entender a verdade que existe e que tentam esconder.” Aurivan Barros dos Santos - Líder Truká, de Cabrobó, Ilha de Assunção - PE

Indígena que hoje vive catando papel na rua

A cena deixou a maioria dos brasileiros tristes mas infelizmente essa é a nossa realidade ainda hoje. Continuamos sem dar atenção aos povos nativos do nosso próprio país e seguimos pecando como pecaram os portugueses nos tempos coloniais.

Nós que somos filhos da mistura entre colonizadores, indígenas e africanos, “ainda somos os mesmos e vivemos como os nossos pais”. “Nem ressurgidos, nem emergentes, somos povos resistentes” Frase indígena no site do CIMI

Voltando à terra... Nordeste do Brasil – Recife e Olinda  “Eu vi o mundo... Ele começava no Recife” Cícero Dias

 Depois de dois dias de conexões e vôos, cheguei em Recife e, pela última vez, desembalei a bicicleta e sai pedalando do aeroporto para o centro. Quase fui atropelado duas vezes e me assustei com a imensidão da cidade. A capital pernambucana é muito maior do que capitais de vários países que conheci.

Vista panorâmica do Recife

 

Agora estou sem saber se o Brasil é o vigésimo nono ou novamente o primeiro país do percurso.

Depois de tanto tempo vendo o mundo com os olhos de um observador, aqui no Brasil estou me readaptando à mescla de espectador e parte da vida local.

Recife parece ter ficado por muito tempo fadada ao paradigma da pequena cidade das belas praias e do frevo com suas expressões culturais apagadas pelo eixo Rio-São Paulo.

Vista panorâmica do Recife

Mas Recife é imensa em tamanho e arte. Sua riqueza cultural sempre existiu (salve Luiz Gonzaga) mas agora está em parceria com a auto-estima que chegou em avalanche desde os tempos de Chico Science e o movimento Mangue.

“Um passo a frente e você já não está mais no mesmo lugar” Chico Science

Vivi nostalgicamente caminhando pelo conturbado centro com o prazer de ser mais um no meio da multidão.

Poder novamente me comunicar com todos e entender os milhões de códigos cuja percepção vai muito além do conhecimento do idioma.

 

 Tive sorte, cheguei já com contatos de bons amigos e habitei na casa de vários. A primeira casa possui uma porta que projetei e eu nem sabia que existia uma cópia aqui em Recife. Foi ela a primeira porta que se abriu para mim no Brasil. Que bacana.

 

 Logo conheci muitos outros amigos. O nordeste tem um calor humano que impressiona. Em poucos dias comecei a encontrar conhecidos pela rua e me sentir como um morador local.

Parece que aqui todos gostam de ir para as ruas e festejar. Não por acaso, a maior concentração de pessoas nas ruas do mundo é no carnaval de Recife, quando acontece o famoso Galo da Madrugada. Infelizmente a festividade e a alegria são para poucos. A grande maioria da população vive em péssimas condições e muitos sobrevivem pior que um cachorro pelas ruas. De todas as dores que essas cenas de miséria possam transmitir, a pior delas é perceber que isso já virou rotina e são poucos os que ainda se sensibilizam ao passar por alguém morrendo de fome na calçada.

Em contrapartida, o prefeito gastou 480 mil reais (160 mil dólares) para pagar o show de Sandy e Júnior na praça principal.

Cenas de Recife

O governo considera que fez um presente para as crianças. O valor de um único show foi o mesmo que a prefeitura utilizou em cultura durante cinco anos! Com isso eles poderiam ter comprado 200 computadores para as escolas! A população fez muitos protestos mas nada adiantou. O pior é que muitas pessoas, encantadas por uma mídia manipuladora, lotaram o show e celebraram mais uma vez o pão e circo da vida.

 

Em toda a viagem encontrei turistas de várias partes, principalmente europeus, me perguntando sobre a violência no Brasil. Sempre respondo que ela realmente existe e que, por exemplo, o filme “Cidade de Deus” não é ficção. Mas essa violência está concentrada nas grandes cidades, onde as diferenças sociais e a guerra civil ficam mais explícitas.

Mas o Brasil é imenso e, principalmente nos pequenos vilarejos, é possível encontrar uma segurança perfeita. Sigo a viagem tranqüilo e desarmado, carregando apenas corpo e alma. Cem por cento partidário do projeto de desarmamento que está tentando ser implantado no país.

Mais uma vez o ser humano brincou de Deus e fez uma interferência catastrófica no meio ambiente. Dessa vez foi a construção do porto de Suape e de alguns hotéis da região.

Isso desestabilizou a fauna marinha e hoje os tubarões, por falta de alimento, estão atacando os banhistas. Agora todos que gostam do mar, principalmente os surfistas, vivem o masoquismo de ir na praia e não poder nadar.

No Marco Zero, onde está ereta a escultura de Brennand, encontrei uma garotada pulando na água.

Ali, pela primeira vez no Brasil, pude reunir uma turma para mostrar fotos e falar dos países que visitei.

 Foi quando me dei conta do desconhecimento que nós brasileiros temos do mundo, principalmente dos países que nunca tiveram oportunidade de contar sua história.

Foto: Altos edifícios numa malha urbana que não comporta a densidade de automóveis e pessoas que está por vir. Mais uma vez o erro urbanístico se repete nas grandes cidades do Brasil.

Agora seguirei viagem mais leve. Despachei o meu notebook, barraca, saco de dormir e outras luxuosidades que me pesavam. Seguirei confiante em encontrar hospitalidade e condições de escrever e manter o site independente do notebook. Hoje mesmo estou aproveitando o computador da casa do amigo Roger e escrevendo esse texto antes de partir. Largo de São Pedro

 Estou com o pensamento de pedalar diretamente na areia da praia até o sul da Bahia, aproximadamente mil e quinhentos quilômetros daqui, e lá fazer outra parada longa. Em breve consigo outra oportunidade e envio mais notícias para o site. Grande abraço, Argus


PATROCÍNIO: Cultura Inglesa T-bolt Mountain Bike by Proton Edar
APOIOS: Atex Lajes Nervuradas, BHZ Arquitetura, SOL Serviços On Line, Telsan Engenharia, Prudential Bradesco e Rotary Club
*Os Textos completos você encontra no site: www.pedalandoeeducando.com.br

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