Pedalando e educando: 30º Relato

35° Diário -  2004
Grécia

Giasas amigos,

Cheguei na Europa! Aqui na Grécia faz frio, chove e de vez em quando neva. Passei as últimas semanas na ilha de Samos esperando a primavera e celebrando a vida com bons amigos, bom vinho e boa comida O inverno ainda está forte e ruim para pedalar mas já estou novamente na estrada. Agora rumo ao sul da Itália para depois subir para Paris. 


Pela primeira vez uma companhia aérea não me exigiu que embalasse a bicicleta para voar. Foi perfeito, fui pedalando para o aeroporto de Alexandria e saí pedalando do aeroporto de Atenas. Cheguei em Atenas de madrugada, coloquei as mochilas na magrela, saí do ar condicionado do aeroporto e entrei no freezer natural do país.

 

Nas primeiras horas em Atenas me impressionei com pequenas bobagens do dia a dia - mulheres andando sozinhas, dirigindo motos, jogando bola, etc. Situações que agente só valoriza quando não tem. Depois de um ano de países islâmicos e hindus, finalmente pude ver mulheres livres de verdade.

Que bom poder vê-las novamente nos bares sorrindo, bebendo e se divertindo. Bem vindo o mundo ocidental! Além da liberdade também me chamou atenção a quantidade de construções na capital.

Em menos de 160 dias Atenas irá sediar as Olimpíadas e está arrumando a casa para o grande espetáculo. Muitos estão com receio do tempo não ser suficiente para ficar tudo pronto. É realmente difícil acreditar que eles conseguirão terminar tantas obras.

"... mas as preparações estão tão fora do tempo estimado que os gregos foram alertados pela possibilidade de perder os Jogos. Oficiais do Comitê Internacional dos Jogos Olímpicos (IOC) falaram que apesar de não existir a possibilidade de mover os Jogos, o seu sucesso está em risco." 
BBCNews (fevereiro de 2004) 



O termo olimpíada surgiu aqui na Grécia em 2500 a.C. quando realizavam festivais esportivos em honra a Zeus no santuário de Olímpia. O evento era tão importante que os países participantes faziam tréguas nas guerras durante esse período. Depois de uma longa jornada, os jogos olímpicos de 2004 em Atenas marcarão a chegada do eterno espírito helênico de volta à casa.

Meus dias na capital foram debaixo de chuva e muito frio (alguns dias com 4 graus negativos!) Meu próximo porto foi a ilha de Samos mas para seguir caminho tive de esperar três dias na capital para a chuva aliviar e os ferries voltarem a funcionar. 

ILHA DE SAMOS 

Samos é uma das regiões mais orientais da Europa. Da ilha é possível ver e sentir um pouco da Turquia. Fiquei a poucos quilômetros da área turca onde pedalei meses atrás. A história da ilha também marca essa proximidade. Ela já foi parte do Império Otomano e durante a ocupação a ilha foi um centro de resistência grega.

Foi uma das poucas ilhas ocupadas pelo exército otomano que conseguiu manter um governo independente. Muitas de suas vilas são escondidas nas montanhas para se protegerem dos antigos ataques piratas no litoral.

Lembra da história da cigarra e a formiga? A vida nessa ilha é assim. Durante o verão todo mundo trabalha com o turismo e o inverno é um eterno domingo. Talvez esses meses pensando na vida sejam o segredo para tanta filosofia.

Samos é supostamente a ilha do filósofo e matemático Pitágoras (580 a.C.?-500 a.C.?), responsável pela criação dos números irracionais e do Teorema do triângulo retângulo - o quadrado da hipotenusa é a soma dos quadrados dos catetos (a2 = b2 + c2). 

De acordo com antigas tradições, a primeira pessoa a se auto denominar um 'filósofo' foi o pensador grego Pitágoras no Séc. VI a.C.

Hoje existe na ilha apenas uma caverna com seu nome. A caminhada para o local é linda mas a caverna em si é apenas um buraco na montanha.

A sabedoria grega está refletida em sua história. Um professor me contou que no Séc.XVI a Grécia foi um dos poucos países europeus contra as colonizações.

Ele me mostrou orgulhoso um artigo e traduziu a frase em negrito: "Colombo, você e sua estúpida curiosidade." Parabéns Grécia! 

Durante a invernada aproveitei para fazer algumas palestras em escolas. Foi bacana. Na Universidade fizeram um convite e por engano colocaram a minha foto com o nome Guimarães Rosa. Na palestra aproveitei para agradecer a distraída homenagem. 

A casa que me hospedei em Samos fica no alto da montanha, na pequena vila de Marathocampos, escondida nas vielas onde nem sequer passa carro. Poucos andam nas ruas e a tranqüilidade do inverno contrasta com a agitação do verão que conheci por aqui há quase dez anos atrás. 

Com Dimitris e Glyca, os bons amigos de Samos, passamos os dias celebrando a vida com bons vinhos e boa comida. Para completar a tranqüilidade da pacata ilha, não tínhamos televisão, microondas, cd-players, computadores, celulares, etc. Para aquecer a casa, todos os dias cortávamos lenha e para beber água enchíamos as garrafas numa fonte vizinha. Além da hospedagem ganhei também o aprendizado de ser feliz simplificando a vida.

Junto com o aprendizado veio também uma consciência pesada de produzir mais um site nesse mundo virtual que faz tantas crianças perderem o tempo na frente de computadores. Por isso peço para que não gastem muito tempo na frente dessa máquina. Espero que o projeto funcione como uma motivação a mais para que desliguem o computador e saiam pedalando na vida real, conhecendo pessoas e se divertindo. 

ELEIÇÕES NO PAÍS DA DEMOCRACIA 

A democracia surgiu na Grécia antiga, no Séc. V a.C. quando seus cidadãos começaram a decidir os destinos da pólis, na ágora, a praça pública.

Hoje o país está concentrado nas eleições para primeiro ministro que serão feitas nesse mês de março. Política na Grécia é igual futebol no Brasil. Nas tabernas, basta tocar no assunto que os limites das mesas se abrem para as discussões e o local se transforma em um parlamento "in vino veritas". 

Fomos numa taverna onde estava ocorrendo um encontro do partido comunista. Logicamente não entendi nada do que falavam mas foi interessante. Pedi para um amigo traduzir a frase que estava junto à foto do Che Guevarra. 

"Se você é um jovem e não é comunista, você não tem coração. Se você é um adulto e é comunista, você não tem cérebro. Se você é um idoso e não é comunista, você não tem alma." 

Ironicamente, no país da democracia, as eleições deixam às claras a oligarquia do país. Os dois candidatos com chances de vitória pertencem às duas famílias que sempre estiveram no poder. Apesar do voto ser obrigatório as sanções são pequenas e muitos não votam. Nas últimas eleições o primeiro ministro foi eleito com os votos de menos de 25% da população. 

Um dos poetas mais conhecidos da grécia é Konstantinos Kavafis. Um dos seus mais lindos poemas é "A estrada para Ithaca". Neste poema ele escreve sobre nossa longa jornada da vida, sobre nossas ambições e desejos fazendo uma analogia à ilha grega de Ithaca. E conclui:

"Mantenha sempre Ithaca em sua mente. Chegar lá é sua meta final, Mas não tenha pressa na viagem. Melhor que dure vários anos; E ancore na ilha quando você estiver velho, com todas as riquezas que você tiver adquirido no caminho, sem esperar que Ithaca irá enriquecê-lo. Ithaca terá lhe dado a linda viagem. Sem ela você nunca teria partido, E ela não poderia dar-lhe mais... Tão sábio que serás, com todo conhecimento, Já terás entendido o que significa Ithaca." 


A eleição foi uma grande festa. Sem maiores surpresas, um dos dois candidatos da oligarquia ganhou. Seu partido de direita fazia oposição ao atual governo que está no poder há 21 anos. Deixaram de ter uma direita fantasiada de socialistas para terem uma direita assumida de real democracia.

Como uma boa final de campeonato brasileiro de futebol, o dia das eleições teve muitas bandeiras e buzinaços. Depois de tanta campanha, um dos candidatos apareceu com a mão quebrada de tanto cumprimentar os eleitores (...é verdade!). 

Aprendi um detalhe interessante sobre a primeira democracia do mundo. Quando implantaram o sistema na Antiga Grécia, os políticos eram escolhidos por sorteio e não por votos. Dessa forma o parlamento tinha uma representação balanceada de vários segmentos da população que eram escolhidos pelos “deuses”. 

A política na Grécia não se resume às eleições. Todos os assuntos são discutidos e protestados. Me chamou a atenção os protestos contra o governo norte-americano e também ao alojamento dos próximos jogos olímpicos em Atenas. 

PROTESTOS CONTRA O GOVERNO NORTE-AMERICANO

Todos os dias 17 de novembro - nessa data, em 1973, muitos estudantes morreram numa tentativa de destituir a ditadura – os gregos fazem um protesto na frente da Embaixada Norte-Americana. Jogam ovos, pedras, coquetéis molotofe, tentam invadir, etc. Além da Embaixada atacam também os bancos, lojas americanas e todos os grandes símbolos do capitalismo. A data é quase um feriado nacional, todos vão para as ruas, não tem escola e nem serviço bancário (óbvio). Aqui todos são conscientes de que a ditadura entre os anos 60 e 80 foi imposta pelos ianques e o protesto deixa claro o repúdio a esse autoritarismo. 

Vi muitas frases contra os norte-americanos pichadas na cidade. Vários grafites igualam o presidente dos EUA à Hitler e seu governo ao nazismo. 

OLIMPÍADA - ORGULHO OU INDIGNAÇÃO

Muitos acreditam que o verdadeiro sentido olímpico, o “agon”, já não existe mais. Hoje é somente um grande evento comercial. Existe um grande movimento de protesto contra as olimpíadas onde criticam a exploração da mão de obra barata para as construções - já morreram mais de 30 pessoas nas construções das obras olímpicas em Atenas. Eu sempre pensei que sediar a Olimpíada fosse motivo de orgulho e me espantei com a revolta que isso tem causado a muitos gregos. 

O CARNAVAL É BRASILEIRO OU GREGO?

Passei o carnaval em Samos. A desilusão foi tanta que nem sequer escrevi sobre isso no relatório anterior. Numa pracinha da pacata vila colocaram uma música grega pop e algumas crianças fantasiadas passeavam pelas ruas sem grandes festas. 


Só em Atenas fui descobrir histórias interessantes sobre o carnaval grego. Em algumas cidades ainda pode-se encontrar rituais que remetem às comemorações dionisíacas de mais de 3 mil anos atrás. Naquela época os marginais – estrangeiros, mulheres e escravos – iam para as montanhas e cultuavam Dioníso (o deus do vinho, na mitologia latina - Baco) bebendo e dançando. Muitos estudiosos acreditam que os participantes da festa se fantasiavam e representavam momentos cruciais da vida do deus. Desta tradição teria surgido o carnaval.

O teatro também tem sua origem nessas comemorações. Os líderes da pólis (cidade grega) começaram a ter receio destas festas, que possuíam uma forte característica anárquica, e criaram os primeiros festivais de teatro para que elas pudessem ser mais facilmente controladas. 

As primeiras apresentações foram feitas no séc. V a.C. Pouco a pouco, foram introduzidos um maior número de personagens que dialogavam entre si e com o coro, dando assim origem à tragédia e à comédia clássicas.

De Atenas fui pedalando pela costa até Patras. No caminho vi muitas montanhas com neve e peguei chuva e frio. Diferente das outras vezes de frio - nos Andes e Austrália principalmente - dessa vez estou com bons equipamentos e jaqueta de chuva que funciona (gore-tex - a água da chuva não entra mas o suor sai).

Pedalar com chuva e frio logicamente não é agradável mas sempre que me lembro do perrengue que já passei sem esses equipamentos penso que agora está tudo lindo. Várias vezes acampei com temperaturas abaixo de zero e dormi com conforto dentro da barraca. 

Agora já estou no norte da Itália, em Roma participei da manifestação pela paz e no caminho vi muitas paisagens e cidades lindas. Mas a Itália ficará para o próximo relatório. 

Grande abraço, 

Argus


PATROCÍNIO: Cultura Inglesa T-bolt Mountain Bike by Proton Edar
APOIOS: Atex Lajes Nervuradas, BHZ Arquitetura, SOL Serviços On Line, Telsan Engenharia, Prudential Bradesco e Rotary Club
*Os Textos completos você encontra no site: www.pedalandoeeducando.com.br

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