Pedalando e educando: 3º Relato

7° Diário - 17 de março de 2002 Bolívia

Ola amigos, Acabo de passar por uma das regiões mais pobres do mundo. Conheci de perto a realidade dos descendentes incas que vivem nos Andes Orientais e fiquei impressionado com sua miséria. Depois de Samaipata segui em direção à Cochabamba passando pela estrada antiga. Foram fortes subidas onde cheguei a mais de quatro mil metros de altitude. Passei por vários pequenos povoados e de Cochabamba fui para Oruro pela estrada principal da Bolívia.

De Samaipata fui para Mairana depois Mataral onde fui visitar os desenhos rupestres que ficam em uma caverna a 5 km do povoado e foram feitos há aproximadamente 4.000 a.C.. O local não possui nenhuma estrutura para visitação e a única pessoa que sabia como chegar até a caverna era o prefeito da cidade, Sr. Fidel Rojas, que gentilmente me acompanhou junto com o professor de história Sr. Lúcio Bonifácio.

Há dez anos atrás o comércio era intenso na região onde passei. Com a implantação da rodovia asfaltada as lojas, restaurantes e hotéis da estrada antiga fecharam e tive muitas dificuldades para conseguir comida e local para dormir. Fiquei em prefeituras, depósitos, barraca, casa de conhecidos, etc. A estrada antiga tem muitas subidas e descidas e foi feita sem grandes tecnologias sempre com um morro de um lado e um precipício do outro, sem nenhum túnel ou viaduto. Várias vezes passei dos 3000 m.a.n.m. (metros acima do nível do mar) e voltava a descer. A dificuldade dos fortes declives vieram junto com as belas paisagens e a adrenalina de algumas descidas. O terreno é arenoso e em muitos trechos da estrada ele está sofrendo erosão que chega a deslocar blocos imensos das montanhas. É comum ver pedras caindo e várias vezes encontrei algumas com mais de um metro de altura que rolaram até o meio da estrada. Guimarães Rosa escreveu que "Minas é um mar de montanhas", como bom mineiro posso dizer que aqui estou no meio de um maremoto. O local é povoado por quíchuas (descendentes diretos dos Incas) que representam 30% da população boliviana, poucos falam castelhano e vivem em completa miséria.

De Mataral fui para Comarapa onde passei toda tarde enviando emails para o projeto e depois subi 2000 metros para um povoado sugestivamente chamado Sibéria a 3500 m.a.n.m., a pedalada durou todo o dia e foi feita com muita neblina, vento, poeira e frio. Cheguei com muita fome e quase gelado - sonhando com um banho quente.

O povoado é muito pequeno com casas muitos simples e vi que não encontraria ali nenhuma pensão ou alojamento. Tive de esquecer do banho e me preocupar em buscar algum lugar para dormir sem morrer de frio.

Consegui um canto onde guardavam garrafas para estender meu saco de dormir e ali fiquei protegido da chuva e do vento. Logo fui providenciar algo para comer e consegui um jantar com uma senhora que esporadicamente serve comida - única opção do povoado. O prato veio com um pouco de arroz e um ovo (comeria dez pratos desse) e após terminar perguntei se poderia me servir outro ovo e a senhora respondeu que era o único ovo que tinha. Fiquei um pouco constrangido com minha pergunta e fui dormir. Ali percebi que realmente todos passam fome de verdade e talvez o ovo que comi já era uma refeição de luxo para eles, agradeci o prato que tive e fui dormir sabendo que minha fome passaria no outro dia mas a deles não.

É impressionante como uma civilização que já foi o maior império da América do Sul vive hoje em condições tão subumanas. São pessoas que perderam totalmente sua auto-estima e vivem como animais. Muitos passam anos sem tomar banho e vivem de subsistência fazendo sua própria roupa e comida. Por várias vezes encontrei crianças andando nas estradas que me viam e corriam com medo para o meio do mato. Com outras atitudes mas de forma semelhante também são os adultos que sempre estão receosos ou com vergonha de algo - quase não se comunicam. Na Fiesta de Tinku eles se reunem e começam a brigar, quanto mais sangue melhor será a colheita.

Quando eu estava quase chegando em Pongo vi do alto os camponeses reunidos no vale e tirei um foto e só depois fui saber que se tratava desse ritual. Quase todos vivem em casas de barro e palha com piso de terra socada, não possuem banheiro ou água encanada e a cozinha se limita a alguns baldes com água e um canto com lenhas onde as panelas ficam em cima. Dormem em camas feitas de palha e cobertores com lã de lhamas.

Grande parte da população é formada por esses camponeses que não fazem parte da população economicamente ativa da Bolívia o que afasta os investidores estrangeiros e deixa o país ainda menos desenvolvido. Bolívia tem um história tragicômica sobre seu acesso ao mar. Em 1879, na Guerra do Pacífico, Chile invadiu suas terras na parte onde tinha contato com o Oceano, no importante deserto e porto de Antofagasta, rico em salitre. A invasão foi feita no Domingo, 23 de fevereiro, e o então General Daza, para não perturbar o Carnaval somente noticiou a invasão nacionalmente quando já não havia como recuperar as terras ocupadas. Hoje Bolívia e Paraguai são os únicos dois países da América Latina que não possuem costa marítima.

Depois da faminta parada em Sibéria desci uns 30 km e parei no Valle Hermoso, primeiro povoado que encontrei. Ali também não tem hotel mas tem um simpático casal, Geraldo e Maria, que me recebeu com muita atenção. Aproveitei a tarde para comer, limpar o barro da bicicleta e jogar um pouco de volei com os amigos do Geraldo. O jogo foi muito engraçado pois eram todos adultos mas jogavam como crianças, invadiam o campo do outro, davam murros na bola, tocavam muito mais que três vezes e não tinha pontuação - o importante era fazer esporte e se divertir.

No outro dia fui para Copachuncho e fiquei na casa do sogro do Geraldo. Ali comecei a sentir falta de uma alimentação balanceada e inaugurei meu complexo vitamínico que carrego para emergências. Nestes últimos dias comi praticamente galinha com batata frita. Segui por Tiraque e Epizana até chegar finalmente em Cochabamba num trecho que tomei muita chuva e vento frio.

Quando eu estava em Comarapa um carro parou na estrada me oferecendo refrigerante e o motorista me deixou o nome e seu telefone de Cochabamba. Logo que cheguei liguei e coincidentemente era a festa de 15 anos de sua filha. O cicerone, Hugo Fernando, logo se tornou um grande amigo e passei com sua família três dias com muitas comidas típicas e visitas aos pontos turísticos da cidade, inclusive um Cristo que é maior que o Cristo do Rio de Janeiro. Fernando fez questão que eu comesse Mama Kongachi que na língua e tradição quíchua significa "o prato que fará você esquecer da comida da mamãe". Fernando é dono de uma grande indústria de garrafas plásticas e me chamou a atenção pela frase que escreveu como lema para seus funcionários: "Enquanto eu estiver vivo e vocês estiverem trabalhando nunca nos faltará nada"

Depois dos dias de fartura e descanso que tive segui para Oruro, agora pela rodovia asfaltada. A subida é forte e mesmo depois de 70 km pedalados ainda era possível avistar Cochabamba lá embaixo. Parei no povoado de Pongo onde existe uma paróquia que funciona como centro educacional para a população quíchua da região. Na paróquia pude conhecer e entender um pouco mais sobre os quíchuas. Pela primeira vez encontrei descendentes incas que tinham conhecimento de sua história, noções de matemática e conhecimentos gerais. Vi ali um trabalho muito importante e fundamental para que essa população possa sair da miséria e lutar por seus direitos.

Segundo o Padre Alberto, coordenador do Centro Pastoral do Pongo, o maior desafio foi fazer com que os quíchuas entendessem que são seres humanos. - Nos primeiros anos ficávamos sem saber o que fazer, eles não sabiam comer, conversar, tomar banho, etc. Nosso interesse não é fazer uma educação escolar convencional e sim promover um conhecimento básico para que possam voltar para seus povoados e transmitir noções de higiene, agronomia, história e comportamento coletivo. Afirmou Padre Alberto. O Centro possui cinco anos de funcionamento e é subsidiado pela Igreja Católica, são revezados semanalmente grupos de 60 pessoas que voltam a cada dois meses.

A princípio os banheiros da Paróquia tiveram de ser reformado pois não se adaptaram com os vasos sanitários e os chuveiros foram uma grande novidade. Essa foi a única organização que encontrei até o momento que realmente se preocupa com a vida dos qúichuas. Parabéns Padre Alberto e todos que ajudam essa instituição! De Pongo fui para Lequepalka passando por La Cumbre 4500 m.a.n.m. um dos pontos mais altos da viagem. Todas vezes que passei dos 4000 m.a.n.m. senti falta de oxigênio (a temperatura de ebulição da água é abaixo de 85 graus) e muitas vezes tive de empurrar a bicicleta, a temperatura é baixa (mín. 5 graus) e muitas chuvas vêm com granizo. As crianças tem as bochechas marrons queimadas pelo vento e frio. Desde Lequepalka comecei a pedalar no altiplano e praticamente acabaram-se os morros, ufa! Agora vou sem grandes subidas até o lago Titicaca. Sei que nesse percurso estou deixando para trás muitos lugares interessantes sem visitar - Potosi, Sucre, Salar de Uyuni, etc. Visitá-los seria no mínimo mais um mês de viagem o que me faria pegar as alagadas épocas de monções no sudeste asiático. Um grande abraço e até o Peru! Argus


8° Diário - 08 de abril de 2002 Bolívia

Ola amigos, Acabei de atravessar a Bolívia e agora começo a rota no Peru. De Oruro fui para Caracolho, Tapacamaia e cheguei na capital La Paz, onde passei alguns dias. Depois de La Paz segui para o sagrado Lago Titcaca passando por Laja e pela importante Tiwanaku.

Agora estou pedalando no altiplano andino. A mudança da subida dos Andes para o altiplano é notada não somente pela geografia mas também pela sua população que agora é dividida entre a etnia quíchua e aimará. Esta comunidade aimará é mais antiga e com uma arquitetura mais requintada - as casas possuem muros com adornos, pequenos jardins e vários volumes. As expressões culturais contempoâneas se intensificaram e várias vezes presenciei ritos de homenagem ao sol, à terra, à lua, etc.

Aqui existe uma divisão do mundo em três dimensões: Alaxpacha, Akapacha e Mankapacha que significam tudo que está acima da terra, tudo que está na terra e tudo que está dentro da terra respectivamente. Akapacha possui várias pachas e a mais celebrada é a Pachamama que é a senhora da força dupla, de tudo que tem condição de reprodução - a Madre Tierra que é fecundada pelo Padre Sol.

De Oruro fui para La Paz, passando por Caracolho e Tapacamaia e no caminho encontrei um companheiro ciclista canadense, Trent Wieb, que já está há dez meses na estrada www.overlandexplorers.com. Existem vários morros com neve eterna no altiplano, estou pedalando entre 3000 e 4500 m.a.n.m. Para chegar em La Paz - a capital mais alta do mundo com 3.636 m.a.n.m. - passei por El Alto e, para meu azar, além do frio tradicional peguei também névoa e chuva. Depois de descer as montanhas que cercam a capital minhas mãos e rosto estavam congelados - não conseguia passar a marcha da bicicleta e minha boca quase não mexia. Achei um hotel e fiquei quase três horas no banho quente para voltar ao normal.

Em La Paz está ocorrendo um forte movimento de resgate da cultura autóctone.

Um dos bares mais agitados da noite pacenha é o Ojo de Água que tem sempre apresentação ao vivo de grupos bolivianos e toca somente ritmos tradicionais. A capital é bastante agitada, praticamente todos os dias ocorrem passeatas no já conturbado centro. Presenciei protestos por melhores salários de professores (ganham aproximadamente 80 dólares por mês) e pela retirada dos alemães que compraram a empresa telefônica estatal boliviana.

A capital boliviana foi construída, no Séc. XVI, em um terreno desocupado. Os únicos vestígios pré-hispânicos de La Paz são as pedras incas trazidas de outros locais e que foram utilizadas para a construção de algumas igrejas. Depois de se estabelecerem nos Andes, os espanhóis começaram o grande genocídio cultural destruindo as edificações incas e contruindo igrejas católicas sobre seus escombros. Hoje a maioria da população boliviana é indígena, os quíchuas e aimarás representam mais de 50% da população, mas a auto-suficiencia pré-hispânica foi trocada por uma instabilidade capitalista que faz com que os descendentes incas vivam no limiar entre a subsistência e a miséria.

La Paz possui alguns edifícios modernos nas grandes avenidas centrais e uma das características mais marcantes da cidade contemporânea são seus prédios "disfarçados" de contrução. Muitos moradores preferem deixar os tijolos sem reboco para pagarem o imposto de obra, que é mais barato que o imposto dos prédios finalizados.

Visitei a Universidade Estatal de La Paz e fui convidado para dar uma aula na Faculdade de Arquitetura. Foi muito interessante e no final quem mais aprendeu fui eu que aproveitei a oportunidade para tirar minhas dúvidas sobre as técnicas utilizadas para fazer as casas de barro e palha, muito comuns nos Andes. Além das técnicas também são interessantes os rituais de construção como, por exemplo, deixar a casa sem telhado por um ano para que o sol possa habitá-la antes das pessoas entrarem.

Bolívia possui hoje 63% de sua população vivendo nas cidades e 37% nas áreas rurais. Na beira da estrada é muito comum ver os campesinos trabalhando no cultivo, principalmente batata, cevada, quínua, kiwicha, e na criação de ovelhas e llamas. Não existem cercas para pastos e para cada dúzia de animais existe um campesino que fica todo o dia acompanhando o pastoreio. Muitos campesinos amarram os pés dos animais como se fosse uma algema evitando que se distanciem. Quase todo cultivo é manual e vi pouquíssimos tratores.

A quínua e a kiwicha são plantas muito nutritivas e sua produção foi proibida pelos espanhóis na época colonial forçando a população a consumir produtos da Espanha. Na década de 70 a kiwicha foi redescoberta pelos cientistas da NASA e foi utilizada como alimento para os astronautas.

Em Tiwanaku conheci um pouco das ruínas de uma civilização que antecedeu os incas e já existia em 2000 a.C. segundo o Arq. Arql. Javier F. Escalante e ao menos 12.000 a.C. segundo o Dr. Jorge Angel Livraga Rizzi (Cruz de Paris em ciências, artes e letras). Pude ver o recém chegado monumento Benet que foi recolocado em seu local de origem após décadas vividas em La Paz, onde foi danificado e perdeu muitos dos seus desenhos originais.

Em Kalasasaya, no centro cívico cerimonial de Tiwanaku, está o monólito Ponce - uma escultura antropomorfa de um sacerdote com um rosto com lágrimas que parecia já prever a estupidez humana que deu fim à civilização tiwanakota e inca.

As construções tiwanakotas foram feitas não para serem reverenciadas e sim para reverenciarem os elementos da natureza. Toda implantação do centro cerimonial está direcionada para o sol ou para lua, suas esculturas são carregadas de misticismos. Existem vários desenhos de jaguar e condor que significam o guerreiro terrestre e o sacerdote em contato com o céu sagrado.

Perguntei para os cordenadores do Museu de Tiwanaku sobre a possibilidade de ver a lua cheia nascendo na Puerta de la Luna e depois de muita burocracia me apresentaram a proposta de um suborno de quinze dólares, além de pagar a entrada normal, para permitirem minha entrada fora do horário - Que os Deuses tiwanakotos perdoem essa e as várias outras corrupções bolivianas que tive de escutar no percurso.

Atualmente existe o Projeto Tiwanaku da Associação Intervida que trabalha com sete mil estudantes entre 6 e 14 anos. São oferecidas atividades extracurriculares direcionadas às necessidades da população. As aulas de reforço de matemática são feitas junto com o aprendizado de cultivo com atividades como: contar plantas, folhas, medir comprimento, pesar e valorar seu preço no mercado, buscando assim integrar os estudantes aimáras com suas atividades cotidianas.

De Tiwanaku fui para o Lago Titicaca que é a divisa da Bolívia com o Peru. Passei por Desaguadero, alguns povoados no Peru e voltei para Bolívia. O lago Titicaca e seu entorno são heranças vivas da civilização tiwanakota e incaica. Lugar sagrado do filho do sol, com vários mitos e lendas. Um dos mitos aponta o lago como local do nascimento do Império Inca.

O lago Titicaca possui dimensões oceânicas (8.340 km2), água ligeiramente salgada e várias ilhas. Perto de Copacabana, pequeno povoado muito visitado pelos turistas, existem as Isla del Sol e Isla de la Luna. Estive em Copacabana durante a Semana Santa e vi milhares de fiéis que fizeram peregrinação até o calvário da Virgem de Copacabana. A grande festa veio com muita poluição - a beira do lago ficou cheia de plásticos e latas.

 

Visitei a Isla del Sol e aproveitei para fazer um trabalho junto com o professor de Ciências Sociais Juan Cruz Quispe e seus alunos da Unidad Educativa Yumani que fizeram desenhos e textos sobre diferentes temas relatando os costumes de seu país: Agricultura, Vestimentas, Comida, Ruínas Incas, Lago Titicaca, Transporte, Madre Tierra e Música. O resultado foi muito bom e tentarei fazer o mesmo em todos os países que passar.

Um grande abraço, Argus

 


PATROCÍNIO: Cultura Inglesa APOIOS: Atex Lajes Nervuradas, BHZ Arquitetura, SOL Serviços On Line, Aliança Francesa, Prudential Bradesco, Rotary Club e Telemig Celular

*Os Textos completos você encontra no site: www.pedalandoeeducando.com.br

<< Pedalando e educando: 2º Relato                                                   Pedalando e educando: 4º Relato>>


Pedalando e educando: O Projeto