Pelo Caminho da Peregrinação: Santiago de Compostela

Espanha

Reflexo da Catedral de Léon. Léon

Considerada uma das mais antigas rotas de peregrinação do mundo, o caminho de Santiago de Compostela cruza todo o norte da Espanha e é conhecido por suas histórias, lendas e místicos rituais. Percorrido ao longo dos tempos por peregrinos de todos os tipos, de pessoas comuns a celebridades, que relatam suas experiências numa tentativa, talvez, de explicar um pouco da magia desse lugar. Ao regressar de mais essa aventura, muitas pessoas me perguntaram em tom de brincadeira se havia falado com Deus, se vi alguma luz mística ou se escutei alguma voz misteriosa. Para falar a verdade, não vi nem os tais gnomos e duendes circulando pelas florestas e muito menos encontrei algum diabinho em forma de galho, como me relatou uma peregrina que conheci. Vi e vivenciei muitas coisas mágicas, que já fazem parte da nossa vida, mas que às quais, infelizmente, em nosso “mundo normal”, não damos a mínima atenção. Para escrever algo sobre o caminho, serei mais uma pessoa narrando uma experiência pessoal, única...

Cúpula do Monastério de Santa Maria La Real. Nájera - Navarra

E talvez ainda esteja assimilando alguns acontecimentos. O caminho está aberto para todos, independentemente da religião, idade, sexo. Cada um deve estar aberto para viver a sua experiência. Planeje-se! Vá e percorra o caminho, quando for a sua hora, o seu momento... Atravesse essa porta misteriosa dentro de si mesmo para se conhecer melhor e, quando regressar, tente explicar o seu caminho. A propósito, se Deus falou comigo, e creio que sempre fala, certamente foi por meio de um sinal, um acontecimento bom, de uma pessoa que conheci, uma bela paisagem ou, até mesmo, através dos meus pensamentos, bons pensamentos nos momentos de silêncio...Ultreya! Walter Magalhães

História

O nome Santiago deriva do nome correspondente em latim "Jacob", que se alterou primeiro para "Iacó" e depois para "Iago". Ao ser santificado ficou chamado de Sant Iago. O fato explica as conhecidas expressões: rota jacobea, ano jacobeu... Filho de Zebedeu e Salomé, São Tiago Maior era assim chamado por ser mais velho do que outro apóstolo, chamado São Tiago Menor. São Tiago era também irmão de outro discípulo de Jesus, João Evangelista. Após a morte de Jesus Cristo, o apóstolo São Tiago escolheu a região da Península Ibérica (província do Império Romano) para pregar o cristianismo, onde ficou por mais ou menos cinco anos. De volta a Palestina foi decapitado por ordem do Rei Judaico Herodes Agripa no ano 42 e teve seus restos jogados fora dos muros da cidade. Dois dos seus discípulos Atanásio e Teodoro levaram seu corpo de volta à Ibéria pelo mar e numa cidade, Iria Flávia, hoje com outro nome, que fica próxima a desembocadura do rio Ulla, seus restos teriam sido depositados numa tumba de mármore e transportado por terra até um bosque chamado Libradón.

Estátua do peregrino São Tiago e minha bicicleta. Puente La Reina - Navarra

Ali, São Tiago foi enterrado. Somente no ano 813, um pastor chamado Pelayo observou um estranho fenômeno que ocorria neste mesmo lugar: uma chuva de estrelas caia todas as noites sobre um ponto no bosque, emanando uma luminosidade intensa. Avisado das luzes místicas, o bispo de Iria Flávia, Teodomiro, ordenou que fossem realizadas escavações no local, encontrando assim, a arca de mármore com os ossos do Santo. No ano 814 o Rei Afonso II, ordena levantar no local uma basílica com uma só nave, que ao longo dos séculos foi ampliada. A notícia se espalhou e pessoas começaram a se deslocar para a região a fim de conhecer o sepulcro, originando-se o Caminho de Santiago.    

Vista da Catedral de Santiago de Compostela. Santiago de Compostela - Galícia

A Vieira

A Vieira é uma concha utilizada como o principal símbolo identificando o peregrino de Santiago. É levada pendurada no pescoço por uns, por outros na mochila e por nós cicloturistas são geralmente presas aos alforjes. Existem várias histórias que podem explicar sua utilização como um dos principais símbolos para os peregrinos. Uma amiga, professora de espanhol, me disse ter lido em um livro editado na Espanha, que os primeiros monges que faziam a peregrinação eram pessoas que haviam feito voto de pobreza e por isso nada carregavam consigo de bem material. Como as conchas eram ao mesmo tempo alimento e utensílio, eles as carregavam como prova de sua simplicidade, ou seja, as usavam para beber água, comer e cobrir os olhos na hora da sesta. Passaram-se muitos séculos e o hábito de carregar as conchas passou a ser uma tradição. Uma segunda explicação diz que São Tiago chegou pelo mar, fazendo-se uma associação da concha com este fato. Uma terceira diz que ao ser aberto o túmulo de São Tiago, seu corpo estava coberto por um manto de conchas. Já outra versão afirma que a concha é um símbolo solar e representa pelo seu próprio formato a própria condição humana como um espaço a ser preenchido de sabedoria. Soube dessas duas últimas referências acima, ao ler o livro "Um Trecho do Caminho" de Auxiliadora Carvalho, uma amiga que fez uma parte do caminho de Santiago. A última versão que conheço trata-se de um milagre atribuído a São Tiago: um jovem que viajava a cavalo por uma praia indo se encontrar com sua noiva para o casamento caiu no mar e foi levado pelas ondas. São Tiago foi invocado e o jovem surgiu do mar com as vestes cobertas de conchas.

Vieira o principal símbolo do peregrino - Alto de Ilbañeta. Roncesvalles - Pirineus

Nossa Viagem 

Realizar a rota de peregrinação do Caminho de Santiago de Compostela, na Espanha, de bicicleta, foi o nosso objetivo quando partimos de S. José dos Campos (SP) no dia 19/out/2000. Dizem que o peregrino já está no caminho a partir do momento em que decide fazê-lo, e foi com essa determinação, muito tempo antes de partirmos, que esse sentimento começou a crescer dentro de nós.  

Cruzes em Ilbañeta - Cada cruz é um pedindo de proteção espiritual para a peregrinação. Alto de Ilbañeta - Pirineus

O planejamento durou um pouco mais de um ano, envolvendo treinamento com viagens curtas pela região, pesquisa e compra de equipamentos, uma vez que a Luciana iria realizar sua primeira viagem de cicloturismo e eu estava passando todas as orientações para ela. A idéia principal além do prazer da aventura, foi registrar através da fotografia e com a nossa própria experiência todos os aspectos culturais, históricos, religiosos, místicos e sociais que envolvem o Caminho de Santiago. O que leva milhares de pessoas a deixar o conforto de seus lares, suas profissões, seus familiares, para enfrentar todo tipo de dificuldade, geralmente incomum no meio em que vivemos.

Região de navarra, pichações de apoio ao grupo separatista Basco "E.T.A". "Gora E.T.A" significa: "Viva E.T.A"

Foram 20 dias viajando por toda a região norte da Espanha, de leste a oeste, num percurso com um pouco mais de 750 km, passando por cidades majestosas, vilas e alguns lugarejos até abandonados. Mas todos os lugares por onde passamos guardam através dos tempos muitas riquezas arquitetônicas como os estilos românicos, góticos e barrocos; história cultural e religiosa.  

Rebanho de Ovelhas - Cenário comum em várias regiões da Espanha. Itero de La Vega - Palencia

Peregrinos

 

Há cerca de 20.000 pessoas por ano viajando pelo norte da Espanha nas três maneiras reconhecidas como formas de peregrinação: a pé, de bicicleta e a cavalo. Não existe realmente um motivo específico, certo ou errado, para levar uma pessoa a percorrer o caminho, pois essa é uma questão pessoal. Cada qual tem o seu verdadeiro motivo. O caminho francês, o mais conhecido dos caminhos, é todo ele sinalizado por setas amarelas.

Peregrinos e cicloturistas rumo à Santiago de Compostela.

 

Um trabalho realizado em 1980 por Andrés Muñoz da Associação de Amigos do Caminho de Navarra, com o objetivo de indicar corretamente o caminho para Santiago de Compostela e evitando assim que muitos peregrinos se percam durante a sua jornada. Existe uma distância mínima a ser percorrida para a peregrinação ser considerada tradicional.   Para quem faz a pé ou a cavalo a distância mínima é de 100km e para que faz de bicicleta é de 200km.

Peregrino se protege do sol intenso. Ponferrada - Léon

Para realizar o caminho é necessário obter a “Credencial do Peregrino”. Esse documento é indispensável para os peregrinos tradicionais, pois lhes permite o acesso aos albergues existentes por todo o caminho. Somente portando a “credencial” o peregrino terá acesso aos albergues. Quem não tiver esse documento terá que procurar outras formas para se hospedar (hotéis, hospedagens...).

As cicloturistas Luciana e Ana Paula seguem a confiável sinalização de placas e setas amarelas pintadas pelo caminho. 

Albergues

Os albergues para peregrinos, também conhecidos como refúgios, representam a mais autentica tradição hospitaleira do caminho. Variam de um para outro sob os diversos aspectos. Os hospitaleiros, como são chamadas as pessoas responsáveis pelos albergues, em sua maioria já foram peregrinos e estão ali como voluntários, prontos a ajudar o peregrino no final de sua jornada diária. No albergue de Logroño fomos recebidos com uma garrafa de vinho para darmos um trago e recuperarmos as energias. Já em Ponferrada, os hospitaleiros recebiam os peregrinos no fim do dia com uma deliciosa limonada, bem geladinha. Dava gosto ver o sorriso surpreso de satisfação do peregrino com tanta generosidade.

Walter, Luciana e os amigos cicloturistas Alemães que nos acompanharam por toda a Galícia. Portomarín - Galícia

Alguns albergues são particulares e cobram em geral 1.000Pts (mil pesetas), o equivalente a R$10,00. Porém, em sua maioria, os albergues pertencem às prefeituras ou ao estado e alguns cobram uma taxa que varia de 300 pts a 500 pts (R$ 3,00 a R$ 5,00), e ainda outros, pedem somente donativos, ficando o valor a critério do peregrino. É lógico que todos devemos dar nossa contribuição para mantê-los funcionando sempre, e assim, continuar oferecendo uma acolhida agradável aos futuros peregrinos. Há albergues que mais se parecem com um hotel devido a sua comodidade e qualidade de serviços, outros são tão simples que às vezes não oferecem nem banho com água quente, o que para o peregrino é uma grande decepção. Muitos chegam a ficar irritados e inconformados dando assim um valor enorme a um simples banho. Em sua maioria fecham às 22h e apagam suas luzes para que todos possam descansar, pois esse é o maior objetivo dos albergues. Às 8h da manhã todos os peregrinos devem ter partido, não podendo ficar mais ninguém em suas instalações, pois estas serão limpas para aguardar os que estarão chegando durante o dia.

Histórias, rituais e apoio aos peregrinos no albergue Ave Fênix do famoso "Jesus Jato". Villa Franca del Bierzo - Léon

Lendas e Significados

História dos Galos em Santo Domingo de La Calzada - Contam que no século XIV, um jovem chamado Hugonell efetuava a sua peregrinação a Santiago de Compostela acompanhado pelos seus pais.

Num dos albergues do caminho em que pernoitaram, o jovem mostrou-se indiferente às investidas de uma criada do mesmo. Ela, por vingança, colocou em segredo uma taça de prata na bagagem do rapaz. Na manhã seguinte a mulher chamou os guardas e acusou Hogonell de furto. O rapaz foi julgado e condenado e em seguida enforcado.

Galiñero - Galinheiro dentro da Catedral de Santo Domingo de La Calzada Santo Domingo de La Calzada - La Rioja

Porém quando os seus pais foram até o patíbulo para recolher o corpo, ouviram a voz de um anjo anunciando que Santo Domingo havia conservado a sua vida. Os pais do jovem imediatamente procuraram o juiz da cidade e pediram que o rapaz fosse liberado, pois estava vivo e de boa saúde. O juiz estava à mesa e com certa razão, não acreditou na história do casal.

A sua incredulidade fê-lo exclamar: - Solto vosso filho quando este galo e esta galinha cantarem novamente - disse o juiz apontando os assados que tinha sobre a mesa. Nesse mesmo instante o galo e a galinha cobriram-se de penas e puseram a cacarejar e a cantar saindo correndo. O juiz soltou Hugonell.

Desde esse dia, na igreja de Santo Domingo de la Calzada, um galo e uma galinha de penas brancas são mantidos vivos junto ao altar, num alambrado no estilo gótico tardio, coberto com uma tela renascentista que recebe o nome de "Gallinero". Os mesmos são substituídos a cada 20 dias e somente ocupam o galinheiro no período de 25 de abril a 13 de outubro. Ao entrar na igreja, se você ouvir o galo cantar, é um sinal que a sua peregrinação será bem sucedida. Daí o ditado popular: "Santo Domingo de la Calzada, donde cantó la gallina depués de asada".

A belíssima "Puente La Reina" construída no Séc. XI Puente La Reina - Navarra

Puente La Reina - Puente La Reina é uma majestosa ponte de construção romana erguida no séc. XI sobreo rio Arga Para quem está fazendo o caminho, ela está situada na saída da cidade de mesmo nome, cuja bela imagem está refletida nas águas do rio. É uma das pontes mais famosas do caminho e dizem que a sua estrutura simboliza a nossa parte física e o seu reflexo na água a nossa parte espiritual. Portanto, é o momento em que nosso mundo físico encontra-se com o nosso mundo espiritual nos levando a momentos de reflexão.

Temperaturas

Inverno: Máxima de 16º C e mínima de –4,5º C; Primavera: Máxima de 24º C e mínima de 5º C; Verão: Máxima de 36º C e mínima e 12,5º C; Outono: Máxima de 25º C e mínima de 7º C.

Dados da Viagem

Cicloturistas: Walter Magalhães, 38anos, Fotógrafo e Analista de sistemas. Luciana Gouvêa, 33 anos, Professora de natação e hidroginástica. Ana Paula Carvalhal, São Paulo, fez parte da nossa equipe de viajando de Pamplona a Sahagún. Duração: 20 dias em bicicleta. Época: Setembro/Outubro de 2000 – Outono Europeu. Cidades: Passamos por 46 cidades e vilarejos ao longo do caminho. Temperaturas durante a viagem: máxima de 37º C e mínima de 2º C às 8h na cidade de Burgos. Pneus: Um pneu furado e um pneu rasgado. Manutenção na bicicleta: uma na cidade de Burgos.

Peregrinos Brasileiros chegam a Catedral de Santiago de Compostela Santiago de Compostela - Galícia

Informações

Associação de Amigos do Caminho de Santiago de Compostela – Brasil. Rua França Pinto, 203 – Vila Mariana – São Paulo – Cep 04016-031. Telefone/Fax: (11) 5549.6160 (das 10h às 19h).

Bibliografias

“Guia Prática del Peregrino – El Camiño de Santiago” Editora EverestAutor: Milan Bravo Lozano(com perfil para ciclistas)
“El Caminõ de Santiago a Pie” Editora El Pais – AguilarAutor: Paco Nadal
"O DIÁRIO DE UM MAGO"
Editorial Rocco Autor: Paulo Coelho
"VIA LÁCTEA - PELOS CAMINHOS DE SANTIAGO DE COMPOSTELA" Editorial Tempo d'imagem Autor: Guy Veloso “
O Caminho das Pedras – Diário de um peregrino a Santiago de compostela”


Walter Magalhães - Analista de Sistemas e Fotógrafo. Pratica o cicloturismo desde 1991, tendo pedalado mais de 5.000Km em viagens de bicicleta. Viajou pela França, Argentina, Chile, Espanha (incluindo o Caminho de Santiago de Compostela), além de outras viagens pela região do Vale do Paraíba e sul de Minas Gerais.