Ciclopoiesis: Chile e Bolívia

CICLOPOIESIS Chile e Bolívia

 “Caracolles” Cordilheira dos Andes

O projeto CicloPoiesis é uma ação/reflexão que problematiza as relações humanas que foram construídas historicamente desde a origem da humanidade, compreendendo esse processo como a relação do individuo com ele mesmo, do individuo com a sociedade, e do individuo com o ambiente. Compreendemos que os problemas como o aquecimento global, guerras e a miséria são conseqüências da reprodução de um modo humano de existência centrado no desejo de dominar e explorar a Natureza e os seres vivos. Toda proposta dessa iniciativa atravessa a utilização da bicicleta, principalmente como meio de transporte, que na compreensão dos integrantes do projeto cria condições para desencadear transformações nessas relações.

 

Encontro com Dr. (Phd) H. Maturana

Em janeiro de 2007 realizamos uma viagem de bicicleta que teve como origem a capital chilena Santiago, onde encontramos com Maturana e seus colaboradores para realizar uma reflexão sobre nossas ações cotidianas e nossa responsabilidade ética diante das ameaças de um possível desaparecimento da vida em nosso planeta, se não transformarmos nossas relações sócio-ambientais. O resultado desse encontro foi o fortalecimento de nosso desejo de viver e conviver em harmonia, promovendo qualquer transformação em direção a conservação da vida em nosso planeta.

Saindo de Viña del Mar

Seguimos pedalando até La Paz, capital Boliviana, foram 2 500 km pedalados onde surgiram algumas reflexões durante nossa experiência, que vamos dividir com você, através de uma releitura do diário de bordo escrito durante a viagem. Que esse relato e essas reflexões despertem muitas questões e diálogos entre os amantes da vida e da bicicleta. No ônibus decidimos mudar os planos e mergulhar na paisagem das montanhas andinas, as 28 curvas do famoso Caracolles. Acampamos a 3.000 metros de altitude e descemos 2 500 m em 300 km pedalados até Santiago, a capital chilena onde esperávamos encontrar um grande mestre.

Cores na estrada

Procuramos pelo Instituto Matriztico coordenado pelo Dr. Humberto Maturana e desfrutamos da companhia de Maturana, Ximena, Patrício e Inácio que conversaram conosco a respeito das relações entre o Projeto Ciclopoiesis e o Instituto Matriztico, tudo acabou saindo melhor do que o planejado, o aprendizado foi especial. Nos dias seguintes, o vento forte, o cansaço acumulado e muita serra, fizeram com que as distâncias dos pedais programados se multiplicassem em nossa subjetividade, mas continuamos vivendo os mistérios da percepção e da realidade que se faz durante o pedalar.

Estrada Pan Americana vista do alto

O deserto se antecipou e a aridez foi sentida em nossas carnes. Muito antes do que esperávamos a sequidão dominou a paisagem, nossos lábios rachados pediam água, enquanto o Sol se punha junto aos cactos, espetáculos que matavam nossa sede espiritual durante a contemplação desse evento diário, que frequentemente passa despercebido, ofuscado por nossas responsabilidades e deveres modernos. Quando planejamos essa viagem, estávamos cientes de que o mundo concreto é diferente do idealizado, por exemplo, fomos surpreendidos com uma estrada muito difícil para pedalar, com muitas subidas e decidas e um vento contra na diagonal que soprava do pacifico, aumentando consideravelmente a dificuldade da pedalada, assim foi até a cidade de Huentalauquén, Termas Socos, Totoralilo e La Serena. Os acampamentos também variaram bastante, desde o quintal de um restaurante junto aos animais de um pequeno sítio, até uma praia paradisíaca em Totoralilo.

Incahuasi, o portal do deserto do Atacama

O caminho se tornou cada vez mais desafiante, o calor, o clima seco e a falta de estrutura entre as cidades eram situações que exigiam cada vez mais planejamento, não podíamos contar com informações fieis sobre o que encontraríamos pela frente, afinal poucos conhecem realmente a diferença que faz 20 km numa viagem de bicicleta. Sendo assim, continuamos nosso caminho com força de espírito e paciência, vivendo cada Km com intensidade, exercitando o estar presente e entregue ao instante que estamos vivendo, nos conhecendo melhor a cada círculo que as rodas de nossos “pés e mentes” completam.

Planejando, realizando e avaliando

Depois de pedalar através de duas grandes serras entramos oficialmente na região do Atacama, onde registramos 1000 km pedalados. Incahuasi é o “pueblo” portal do deserto, um lugar mágico e sinistro, onde pudemos experimentar como é viver no deserto. As crianças da cidade logo perceberam os “forasteiros” e com seus olhares curiosos e desconfiados se aproximaram, “...de onde vocês são? ... para onde vocês vão?” Depois de tantos momentos intensos o grupo sentiu a necessidade de um momento de reflexão coletiva para avaliar a viagem e problematizar algumas dificuldades de relacionamento que surgiram. Cada um dos “Cicloviajantes” teve a chance de se expressar e colocar para o grupo suas percepções sobre a viagem... seguimos viagem, pedalando e refletindo em silêncio pelo resto do dia. Durante uma pedalada noturna notamos que algo diferente pairava sobre nossas cabeças... o cometa McNaught com sua nebulosa cauda entre as estrelas.

Resolvendo problemas na estrada

Nesse cenário conhecemos mais um mestre, com 48 anos e mais de 150 mil quilômetros pedalados ao redor do mundo, Vita, um tcheco bastante simpático e humilde compartilhou conosco suas experiências durante um café da manhã típico do deserto. Sua alegria, simplicidade e vitalidade foram os ensinamentos que nos apropriamos desse encontro. Num momento muito delicado da viagem percebemos: Somos diferentes! Cada um tem seu ritmo, seus interesses, objetivos... O convívio diário torna essas diferenças ainda mais intensas. De uma maneira madura, um dos integrantes (Leonardo) optou por continuar sua viagem em solitário. Apoiamos sua decisão e lhe desejamos sucesso em suas buscas individuais. Nesse momento recordamos nosso encontro com o Instituto Matriztico, as interações que estamos vivendo estão sempre transformando nós mesmos e o mundo que construímos, a reflexão “Bio-Budista” de Patrício está sendo vivida durante todos os instantes da viagem.

Muito calor e ausência de água

“A pessoa mais importante para mim é o outro que está convivendo comigo naquele presente... assim podemos viver nosso presente e nos conectar com a Matriz Biológica da Existência Humana.” Para chegar em Antofagasta percorremos distâncias de 140 km de deserto sem nada no caminho, isso é assustador quando se esta viajando de bicicleta. Nesse contexto estudamos o mapa e conversamos muito com diferentes pessoas que nos davam informações, muitas delas contraditórias, fazendo com que a escolha do caminho se tornasse algo bastante complexo.

Estrada para o Observatório Paranal

Optamos por fazer um trajeto alternativo pela costa, dessa maneira seguimos até a vila de pescadores Paposo onde fomos acolhidos por uma família local. Na manhã seguinte enfrentamos aproximadamente 50 km de subida, saímos do nível do mar e pedalamos até 2 mil metros a cima do mar, definitivamente foi o trajeto mais pesado de toda viagem. Depois de experimentar as dificuldades da altitude, vento e longas subidas conseguimos abrigo. Pedalamos até Antofagasta muito desgastados, logo na entrada da cidade encontramos uma casa com a bandeira do Brasil, finalmente um prato de arroz e feijão!

Estrada para o Observatório Paranal

Em Calama, 1.939km depois do inicio da viagem, Karina se juntou a nós para conhecermos as belezas do deserto mais árido do mundo. Encontramos Karina e partimos rumo a San Pedro de Atacama, logo Karina percebeu como a água seria um bem precioso durante esta viagem. Estávamos diante de um quadro psicodélico, montanhas de areia e pedras lindas coloriam a paisagem. San Pedro do Atacama, uma cidadezinha extremamente aconchegante e charmosa, cheia de pessoas que buscam aventuras e cenários fantásticos. Águas de Puritama chamou nossa atenção nesse trecho, um oásis a 3500 m de altitude com piscinas naturais formadas por águas vulcânicas em meio a um canyon que se imortalizou em nossas mentes. O Salar de Atacama, e a laguna Cejas também merecem destaque em nossas recordações, com 40% de concentração de sal (maior que a do Mar Morto!) ao mergulhar naquelas águas nos sentimos gratos, apenas por estar vivo!

“Caracolles” Cordilheira dos Andes

Estávamos ansiosos para conhecer os olhos do Salar (Ojos Del Salar), mas como não havia mais luz não conseguimos encontrar aquelas crateras cheias de água no meio do deserto, então pedalamos de volta para uma superfície com mais terra e menos sal, onde poderíamos armar as barracas. Mais alguns quilômetros e nos deparamos com dois buracos gigantes, um de cada lado da estrada, a reação dos 4 foi a mesma... nem pensamos e mergulhamos nos olhos verdes do Salar. Na volta para San Pedro ficamos sem água! Restavam apenas uns 20 ou 30 km para alcançar a cidade, mas o fato de ficar sem água em pleno deserto nos fez perceber o desespero de ficar sem nossa principal fonte de vida. Logo sentimos a necessidade de pedir água para um carro que passou. Coma as garrafas cheias, a insegurança diminuiu.

 Centro de San Pedro de Atacama

Karina voltou para São Paulo, enquanto nós decidimos ficar em San Pedro de Atacama para continuar a viagem, decidimos pegar um trem de Calama até Uyuni na Bolívia, de acordo com as dificuldades que encontraríamos para entrar na Bolívia pedalando. Além da altitude elevada e relevo acidentado, o trecho contava com estradas em péssimas condições e grandes distâncias sem pontos de apoio, ou seja, uma travessia por uma zona inóspita que não estávamos preparados para cruzar. Sentimos a saída da integrante feminina da equipe que com sua alegria e boa energia nos contagiou. Apesar dos poucos dias que Karina nos acompanhou tivemos a chance de compartilhar momentos, idéias e emoções que com certeza marcaram nossas vidas.

Caminho para águas de Puritama

As passagens para o trem estavam bastante disputadas e foi preciso passar a noite em uma fila para tentar comprar-las. A noite foi muito conturbada, foram chegando muitas pessoas, algumas delas começaram a tumultuar e arrumar confusão. A madrugada foi longa!!! Em fim, abriram-se as portas para comprar as passagens, quando chegou a nossa vez, o ingresso se acabou... juramos por Deus!!!! As passagens acabaram na nossa vez, PASSAGENS ESGOTADAS!!!! O que fazer? Viver as transformações, ser flexível e dinâmico como a vida! Pegamos um ônibus para La Paz, a melhor alternativa para nossa realidade, e lá iríamos decidir nossos planos. O aprendizado foi simples, a imprevisibilidade está sempre presente em nossas vidas, vivemos num instante presente aberto de probabilidades e possibilidades.

Conserto de pneu no deserto do Atacama

Assimilamos a mudança e logo no embarque do ônibus de Calama para Arica no Chile, o motorista cobrou uma taxa extra para levarmos as bicicletas, ficamos indignados!!!! Porque cobrar essa taxa se há espaço suficiente no ônibus? Para quem fica esse dinheiro? De repente, em meio a uma discussão entre nós e o motorista, um passageiro retira o equivalente a cinqüenta reais do bolso e paga a taxa extra relativa as bicicletas, imposta sem critério confiável pelo motorista. Ficamos sem entender absolutamente nada, mas aceitamos e agradecemos aquele homem de bondade rara. Logo em seguida, embarcamos para Arica refletindo sobre a necessidade de integração entre os meios de transporte, em muitos paises já existem ônibus urbanos com espaços especiais para guardar bicicletas, dessa forma os ciclistas podem pedalar e também utilizar o transporte público urbano sem nenhuma dificuldade ou impedimento.

Laguna Cejas

De acordo com a nossa perspectiva, essa integração é muito inteligente e deve ser fomentada em todo mundo, pois compreendemos que a vida de uma pessoa que utiliza a bicicleta como meio de transporte deve ser facilitada e não dificultada, principalmente devido aos benefícios que a utilização da bicicleta gera para o convívio coletivo. Para nós, isso foi como um sinal de que estamos fazendo algo importante e significativo, as pessoas se sensibilizam com nossa ação e estão nos apoiando sempre na hora que mais precisamos. Somos cientes que existem aqueles que querem continuar vivendo na mesma lógica de exploração, mas também existem aqueles que estão transformando essa lógica, e as forças estão a nosso favor!

Caminho para os Ojos del Salar

Na fronteira do Chile com a Bolívia tivemos um grave problema, o guarda boliviano da fronteira nos impediu de entrar na Bolívia, porque não tínhamos o comprovante que havíamos nos vacinados contra a febre amarela. Na realidade esse é um acordo entre os dois paises e o erro foi nosso. Percebemos nossa falha e começamos a conversar com o policial Boliviano, que se irritou e nos levou para uma sala. Quando o mesmo começou seu discurso referente ao problema, compreendemos que o que nos impedia de entrar na Bolívia não era a vacina, e sim uma propina de 10 dólares para os policiais da fronteira, que serviu como comprovante da vacina contra febre amarela. Burocracia e Corrupção... que merda!

Salar de Atacama

Somos cientes que o erro foi nosso, mas também somos cientes, que aquele homem não estava preocupado com a possibilidade de estarmos infectados com o vírus dessa doença e com os problemas que isso poderia gerar para a nação Boliviana, ele estava preocupado com seu “bolso”. Mais uma vez o velho discurso vazio do bem coletivo, a favor do egoísmo estúpido. Finalmente chegamos em La Paz, vivendo o processo dialético de viajar de bicicleta. Planejando, realizando e avaliando, sempre de forma circular e não linear, refletindo e agindo, fluindo na lógica da transformação! Em La Paz percebemos que o cenário de nossa viagem mudou, enfrentamos algumas dificuldades que nos surpreenderam e resolvemos voltar para o Brasil. Houve um deslizamento de terras na estrada que liga o oriente boliviano ao ocidente, voltar para casa foi outra aventura.

San Pedro de Atacama

Nossa cicloviagem havia terminado, mas a aventura ainda não! Quando estávamos em La Paz, houve um deslizamento de terra na estrada que liga o oriente boliviano ao ocidente, a estrada estava interditada à 15 dias e não existia previsão de normalização das condições de trafego da mesma. Nossa estratégia foi embarcar num ônibus para Cochabamba, uma cidade mais próxima do desastre para especular algumas soluções. Encontramos um ônibus clandestino que estava transportando as pessoas até o local do deslizamento, resolvemos arriscar! Chegamos no local e nos deparamos com um cenário intenso e desafiante, a chuva era constante e milhares de pessoas atravessavam aquele trecho por uma trilha aberta pelos civis e interditado pelas forças armadas bolivianas. Enquanto as máquinas trabalhavam na re-construção da estrada, pessoas como nós “metiam o pé na lama” para atravessar o deslizamento.

Salar de Atacama

Chegamos do outro lado depois de fazer uma travessia muito ousada, carregamos nossas bicicletas que pesavam aproximadamente 30 kg cuidadosamente morro a acima e a baixo, enquanto as pessoas nos alertavam que não era possível passar com as bicicletas pelo caminho. Chegamos ensopados e cobertos de lama, observamos a mesma situação do outro lado, pessoas indo e vindo, carros e caminhões parados e outro ônibus clandestinos com destino a Santa Cruz de La Sierra. Não pensamos duas vezes e subimos em nossas bicicletas e decidimos pedalar, levantamos algumas informações e nos lançamos na estrada de novo. As informações estavam erradas e tivemos que pedalar uns 70 km de bicicleta, pegar uma carona, três táxis e um ônibus para chegar em Santa Cruz de La Sierra somente no dia seguinte.

Criança Aimara pedalando no lago Titicaca

Em Santa Cruz embarcamos no famoso trem da morte, que não é nada assustador, em direção a Corumbá no Brasil. O trem foi uma experiência muito interessante, nada melhor do que viver uma cultura diferente inserido nela de verdade. A Bolívia é um país muito rico culturalmente, mas enfrente problemas sociais, políticos e econômicos muito graves, é preciso ter paciência e compreensão durante uma viagem por esse país para não deixar os problemas ofuscarem a beleza dessa cultura. Em fim chegamos no Brasil, nossa terra natal que sempre deixa saudades nos corações de qualquer viajante e logo na entrada desfrutamos de um típico prato de arroz com feijão e farinha, um verdadeiro banquete. Estávamos ansiosos para re-encontrar as pessoas que amamos e que ficam com os corações apertados como os nossos quando estamos longe, até que a ansiedade se torne serenidade em cada abraço dividido.

Trabalhador pedalando no lago Titicaca

Nesse momento, estamos socializando nossas experiências e abertos para dialogar com todos aqueles interessados em conhecer nosso projeto, realizamos uma exposição fotográfica em São Paulo e vamos realizar outra em Florianópolis, nos dispomos também a promover encontros coletivos com os interessados em conversar sobre os temas que atravessam nossos propósitos e experiências. A próxima etapa dessa viagem que estamos realizando, provavelmente terá inicio em janeiro de 2008, com algumas surpresas em relação ao planejamento e o percurso, que será divulgada em breve. Nós no Projeto CicloPoiesis agradecemos a todos pelo interesse em dividir essas experiências conosco e também convidamos a todos a continuarem agindo e refletindo em direção a conservação da vida em nosso planeta, pedalando ou de qualquer forma possível. Para ver mais informações e o vídeo do projeto acesse: www.cicloviagem.org


Rodrigo Ferrari é o idealizador do Projeto CicloPoiesis, utiliza a bicicleta como meio de transporte principal a 5 anos e já realizou diversas cicloviagens pelo Brasil e pedalou em solitário os primeiros 3 mil km do projeto. Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.

Ricardo Zinner é fotografo profissional e amante da bicicleta desde sua infância, especializado em esportes, já percorreu os cinco continentes registrando as belezas do mundo com sua inseparável câmera fotográficas. Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.

Vitor Carneiro é um viajante por natureza, já realizou diversas viagens pelo mundo a bordo de veleiros e adotou a bicicleta como meio de transporte principal recentemente, após a participação na segunda etapa do projeto.
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Karina Oliani é apresentadora de televisão e modelo profissional, mas sua grande paixão é praticar esportes radicais, já foi campeã brasileira de wake board e encara qualquer desafio com serenidade. Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.